24 Abril 2024, Quarta-feira
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ESTÓRIAS AO SABOR DA MEMÓRIA – Os postos avançados

Os postos avançados situavam-se estrategicamente em três locais da periferia de Aldeia Formosa, a algumas centenas de metros do quartel. Durante o dia, cada posto era guardado por um homem, às vezes dois. À noite pernoitavam lá cerca de dez homens (uma secção) comandados por um furriel miliciano. Como o nome indica, constituíam guardas avançadas, uma primeira linha destinada a vigiar e supostamente conter investidas do inimigo. Digo supostamente, porque a quase totalidade dos soldados pertencia a especialidades não operacionais, corneteiros, condutores, mecânicos e outros, e básicos que ajudavam nas cozinhas. Carne para canhão, portanto.

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Os postos avançados recebiam volta e meia a visita de um dos oficiais de carreira do batalhão, um sujeito macambúzio, de andar pesado e tão escasso de falas quanto de habilidades para o ofício. O homem aparecia por lá normalmente a meio da tarde, cuspindo tabaco e sentenças idiotas, e evidenciando um certo ar de interessado que não convencia ninguém. Ficava-lhe no caminho das visitas regulares que fazia a uma das várias mulheres do chefe da milícia, um nativo abrutalhado, primitivo, beiços de mula e cabelos de neve, de seu nome Camará.

A soldadesca andava com um olho na marosca e com os dois na boazona, uma negra retinta, linda, dengosa, insinuante, senhora de um corpinho de se lhe tirar a chapeleta, uns olhares e uns modos que desinquietavam um santo e provocavam insónias ao quartel inteiro. Alguns deram-se mesmo ao trabalho de montar espia aos movimentos do oficial e passaram a badalar as peripécias do caso.

A seguir à volta rápida pelos postos, dirigia-se para a tabanca grande do chefe da milícia e bradava, numa voz de comando e de bagaço, o cigarro meio de fora, meio na boca:

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– Ó Camará!

O outro aparecia com meneios de cão fiel, servil, dobrado, e chamava, por sua vez:

Binta, tá qui nosso capiton.

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E afastava-se para deixar campo aberto ao ataque do D. Juan, que entrava pela casa a dentro como exército por território conquistado, mandando às malvas o respeito e a decência e a honra. Quando saía, sempre acompanhado até à porta pela magana, que se saracoteava com modos de galinha após a galadura, o senhor oficial era outro homem, todo ele baba, mais comunicativo, uma simpatia.

Sob uma enorme mangueira, o desgraçado do condutor do jipe, malgradado, desfazia-se em suores e desesperos, na sorna que durava o tempo em que o superior se enroscava com a beldade. Como prémio pela seca, tinha certa a sua cervejinha fresca no bar dos oficiais. Certa era também a galhofa do Augusto, um gozão de Beja, quando o Alves regressava à caserna assoprando contrariedades:

Atão, Alvis, já fostes levar o barrasco à marrã? Sempre me saístes um lolinhas!

O Alves, que adorava o prazer fresquinho da loira à borla a escorrer-lhe pelo gargalo, mas a quem a providência não tinha fornecido os apetrechos necessários para pau de cabeleira, bufava de danado perante a chacota da caserna.

No termo da comissão, era eu, de longe, o furriel com mais meses de permanência nos postos avançados. Certa vez, após a nomeação para mais um mês ou dois de posto avançado, refilei com o meu comandante de companhia, questionando-o sobre o trabalho que me caía em cima. O oficial, os olhos a brilhar de velhacaria, respondeu:

– Sabe, Danado, você é humilde, trabalhador e bom rapaz, e quem é assim, na tropa, está… (e dispenso-me de repetir o palavrão.) Desarmou-me.

Durante os meses que passei em dois dos postos avançados, respirando o bafo de oito ou nove homens numa tenda acanhadíssima ou dormindo à mercê do cacimbo numa tabanca sem telhado, fazendo as necessidades fisiológicas por ali, servindo de banquete a enxames de mosquitos, correndo os riscos resultantes de ter como sentinelas homens que mal sabiam disparar, entregue a mim próprio e sentindo o peso da responsabilidade pela segurança dos companheiros, sofri momentos de angústia e de revolta. Mas aos vinte anos temos uma capacidade extraordinária para darmos a volta às contrariedades e para retirarmos satisfação mesmo nas situações mais adversas. Ali, no posto avançado onde eu estivesse, os regulamentos e as hierarquias estavam reduzidos à expressão mais ínfima, ao estritamente necessário. Ali éramos irmãos, éramos iguais, cada qual revendo os seus problemas nos problemas dos outros e ajudando-nos mutuamente. E a camaradagem sã e a sólida amizade que se foram consolidando naquele contexto particular de isolamento, de dificuldades maiores e de sofrimentos mais sofridos, em que cada um era capaz de confiar a sua vida aos outros, irmanava-nos, fortalecia-nos e propiciava momentos de divertimento e alegria que nos ajudavam a manter a sanidade mental.

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