Bolachas, farturas, lombinhos, frango assado e pão com chouriço. O DIÁRIO DA REGIÃO foi conhecer as histórias por detrás dos sabores históricos da Feira de Sant’Iago, aquele que é um dos principais certames do sul do país
Com mais de quatro séculos de história e arraiais assentes há 13 anos no Parque de Sant’Iago, na zona das Manteigadas, é certo que a feira já mudou muito, mas se há coisa que a conservou autêntica foi a oferta de comida e bebida. Entre dezenas de vendedores há de tudo, desde cachorros a waffles, algodão doce, bifanas, caipirinhas e até kebaks – porém, poucos se poderão orgulhar de manter viva a tradição da feira ao longo de gerações familiares e criando verdadeiros laços com os que são da terra ou chegam de passagem. E que encontram sempre motivos para regressar ano após ano.
Bolacha Piedade. Símbolo da doçaria setubalense
Quando apareceram para adoçar a vida dos setubalenses, em 1855, eram vendidas pelos chamados miúdos do tabuleiro que levavam um pendurado ao pescoço, cheio de bolachas, e gritavam pregões a anunciar a Bolacha Piedade. É a figura deles que surge representada no logotipo da marca, com fábrica na Rua do Ligeiro, na Anunciada, que abastece a loja na Avenida Luísa Todi e, por estes dias, o estabelecimento na feira. Quem o conta é Arnaldo Pereira, casado com uma das três filhas da fundadora da marca – Delfina, Isabel e Gabriela – que hoje asseguram a sexta geração do negócio. Mas não é preciso recuar no tempo para perceber o segredo da longevidade destas bolachas, conhecidas por serem rijas e estaladiças, adocicadas por erva doce e de formato mais estreito, largo ou comprido. Há décadas que as filas se sucedem e que a esplanada vermelha e azul, com mobiliário original de há 50 anos, se enche de clientes fiéis a este que é um dos ícones da doçaria tradicional da cidade. Vende-se a 14 euros o quilo e a boa notícia é que está disponível durante todo o ano, na pastelaria na baixa, já não sendo preciso comprar quase dois quilos de uma vez, como muitos faziam antigamente. Também já há quem a leve no avião e a torne uma embaixadora de Setúbal por esse mundo fora.
Restaurante O Serrano. A tradição do frango assado na feira
“A tradição do frango assado na feira”, é assim que Abílio Santos, 47 anos, resume a essência do restaurante O Serrano, habitué do certame desde 1979. Antes de chegar à mesa, o frango é assado na rua, colocado num pequeno elevador que o leva até à cozinha e depois é servido com batatas, arroz e salada. É o prato que os clientes mais pedem (e até se vende para fora), mas o lombo de porco com camarão no tacho “também sai muito bem”, assim como o choco frito à moda de Setúbal, as sardinhas e todo o tipo de grelhados no carvão. Esta cozinha tradicional portuguesa sobre rodas – o restaurante nasce literalmente de dois semi-reboques transformados em cozinha e sala com 140 lugares – começou-a o pai do sogro de Abílio, José Serrano, 67 anos, que “deu o nome ao restaurante que já funcionava desde o tempo do pai dele”. Todos os dias de feira a partir das 18h e até à meia-noite trabalham ali 14 pessoas, o que nem sempre é fácil porque “requer muita logística” e “a feira não tem folgas”, desabafa Abílio Santos. E ainda bem: a avaliar pela casa cheia, O Serrano continua sobre rodas – e seja qual for a festa onde estacione, tem uma particularidade: “o preço mantém-se”.
Bar Séninho. A tradição dos lombinhos na chapa
Talvez poucos saibam a origem do nome. É o diminutivo de Arsénio, o pai de Arsénio Inácio que há 27 anos assume a gestão do Bar Séninho. Quando questionado sobre o que tornou os lombinhos o jantar mais concorrido da Feira de Sant’Iago, responde com sinceridade: “Gosto de dar ao cliente o que eu próprio gosto de comer”. E dá oportunidade de ver como é feito. Na chapa só se grelha carne fresca e nacional, que uma vez no ponto é envolvida numa “margarina com um toque especial de tempero” e servida no aconchego de pão cozido em forno a lenha numa padaria da zona de Setúbal. Os oito jovens que o ajudam, quase todos da família, não têm mãos a medir para servir tantas imperiais, sendo que também há vinho verde de Palmela servido em copo ou em caneca (lombinho e imperial custam 4,70 euros). Para o professor do ensino secundário em Azeitão, a experiência dá “um gozo especial”, especialmente quando revê amigos. Diz que de ano para ano “uns acabam por ficar mais velhos, outros mais novos. Deve ser de comerem os lombinhos”.
Farturas da Luizinha. As farturas da feira
São a primeira coisa que vem à cabeça quando se pensa em comer farturas na feira. E a fama deve-se, na opinião de Manuel Pereira, neto da D. Luizinha e actual responsável pelo negócio, a “três pequenas coisas que no fim fazem um produto especial”: o respeito pelo cliente, o amor com que se faz e a qualidade das farturas. A cada dez minutos sai um conjunto delas, e tudo começa com a água quente, com uma raspa de limão e farinha e óleo de qualidade. Quando é deitada na fritadeira, com o óleo a 190 graus, “a massa tem de levar um choque para que não absorva mais óleo. Isso faz com que a fartura fique sempre sequinha”, revela Manuel. É ele quem opera a seringa da massa, enquanto outras cinco pessoas mantêm bem oleada toda a cadeia de produção que leva a fartura ao cliente – com mais ou menos açúcar e canela – sempre quente e envolta num guardanapo. A Farturas da Luizinha, fundada em 1965, é a única roulotte a vender apenas farturas (cada unidade a 1 euro; seis a 5 euros), e isso nunca foi problema para quem aguarda quinze, vinte ou trinta minutos na fila. Manuel Pereira arrisca uma explicação: “Farturas há muitas, mas…” talvez nenhumas como aquelas.
Princesa do Sado. O arte do pão com chouriço
“O segredo está na massa”. Parece chavão, mas é verdade. Que o diga Luciano Conceição, que divide tarefas com a mulher atrás do balcão da Princesa do Sado, há mais de 40 anos na feira. Enquanto ela atende os fregueses na caixa, ele coloca e retira os pães de um dos três fornos a lenha que funcionam rotativamente para que haja sempre fornadas quentes e saborosas a sair a cada quarto de hora. No início só faziam pão com chouriço – “o nosso chouriço é o melhor”, dizem –, até introduzirem o pão com queijo e o pão com torresmos. Tudo feito com água, farinha, fermento e alguns segredos que os tornam muito procurados (2,50 euros cada unidade). Para beber e dar andamento à noite na feira, há imperial à pressão (1 euro) e vinho a copo.
André Rosa
Fotografias: Diário da Região