Desde 1876 que é um dos centros de comércio mais dinâmicos da cidade e, desde há oito anos, um dos mais famosos mercados do mundo – muito graças à frescura do seu peixe. A qualidade e diversidade da oferta atraem fregueses de toda a parte, mas são os comerciantes que lhe dão alma e charme a cada ano que passa. Um retrato do Mercado do Livramento que comemora 143 anos no dia 31 de Julho
“Para o menino mercado, muitos anos de vida!”. Já lá vão 143 aniversários, e o Mercado do Livramento, em Setúbal, continua bem e recomenda-se. A Praça – como os setubalenses lhe chamam –, continua a ser local de compras por excelência para quem quer abastecer-se com o que a região, e o país, têm de melhor em peixe, fruta, carne, hortícolas e muito mais, e apesar da provecta idade mantém-se jovem e dinâmica, ao ritmo de uma cidade cada vez mais aberta ao mundo.
Prova disso são os novos negócios que tem acolhido, como a loja Setúbal in my Heart, da empresa de turismo de natureza Rotas do Sal, sediada em Sol Troia. De porta aberta para a avenida, onde existia um talho, provam-se agora moscatéis da região, compram-se vinhos, doces, conservas e sal com especiarias, e marcam-se passeios para ver golfinhos ou passear pela Arrábida. “Faltava-nos um espaço em Setúbal e escolhemos o Mercado do Livramento”, conta Jorge Pina, um dos sócios desta empresa de turismo.
A verdade é que Setúbal está cada vez mais turística, sendo procurada por gentes de todo o mundo, e o Mercado do Livramento em muito tem contribuído para essa dinâmica. Especialmente desde que, há oito anos, foi eleito pela jornalista Marla Cimini, especialista em gastronomia e vinhos no jornal USA Today, um dos 10 mercados de peixe mais famosos do mundo, ombreando com espaços em Tóquio e em Madrid. Quando celebrou 140 anos, o mercado brindou a jornalista com uma caldeirada confeccionada pelos vendedores, com produtos do mercado.
Na zona do peixe, um deles é Piedade Mendão, de 64 anos e a trabalhar ali há 33. Adora o que faz – conta, bem-disposta, a O SETUBALENSE – DIÁRIO DA REGIÃO – e não hesita em puxar a brasa à sua sardinha para explicar porque tem uma das bancas de peixe mais concorridas: “Os meus clientes gostam do peixe amanhado por mim porque eu amanho o peixe muito bem”. Sargos, douradas, salmonetes, pregado, garoupas, carapau, sardinha, lulas, tudo vem mar do mar, sempre fresco.
“Tenho orgulho no meu mercado”, conta. E tal como ela, também Carlos do Carmo, setubalense de 65 anos, tem razões para se orgulhar, com elevado sentido de “responsabilidade” por trabalhar desde 1981 num dos mercados de peixe mais afamados. “Temos de fazer prevalecer a qualidade”, reconhece. A variedade é outro dos trunfos da sua banca: costuma ter raia, safio, tamboril, cação, robalo, douradas e tudo o mais que a lota lhe der a cada dia. “Setúbal tem o melhor peixe do mundo”, elogia.
Já nas bancas de Valdemar Piedade, por exemplo, o peixe não vem só da costa sadina. Conforme as espécies, também o tem do Algarve, Sines, Nazaré, Peniche ou Matosinhos. O peixe-espada preto, sim, é quase sempre de Setúbal, conta o comerciante que já ali trabalha, com a ajuda da família, há 28 anos. O movimento a isso tem ajudado, conta, satisfeito.
Durante a semana nota-se bem a azáfama de clientes, num quadro do quotidiano marcado pelas cores vibrantes das frutas e legumes, pelo cheiro do peixe e pelo ruído de fundo. Mas já lá vai o tempo em que os vendedores podiam apregoar para atrair mais clientela. “Há orégãos, há louro, há chás, plantas aromáticas. Olha o pinhão torrado!” era o pregão que Adriana Ganhão, de 47 anos, utilizava. “Agora o mercado não permite”, explica, perto da banca onde vende, quase a título exclusivo, várias plantas aromáticas e chás. “Sou ervanária, sou eu que apanho as plantas selvagens, sou eu que as seco. O meu crescimento como ervanária, sem curso, foi à minha conta e dos meus ricos clientes que vieram oferecer livros”. Assim se vê como Setúbal lhe retribuiu o amor que foi nutrindo pela cidade, aonde chegou vinda de Coimbra com três anos.
Outros houve que quase nasceram no Mercado do Livramento. “Não nasci aqui dentro, mas quase: vim para cá numa alcofinha, pequenino, para este sítio, com os meus pais. Aqui aprendi a gatinhar, a falar, a comer”, aponta Jaime para a coluna que delimita o seu espaço de venda. Quando andava na escola, do outro lado da Avenida Luísa Todi, Jaime Fonseca ía almoçar e passar os tempos livros ao mercado. Passaram-se quase 81 anos, 66 dos quais à frente de uma banca de azeitonas, e tornou-se conhecido até hoje como Jaime das azeitonas. “Antigamente só havia duas variedades, hoje temos quase dez”, e quase todas nacionais, conta o simpático comerciante.
Ontem como hoje, a frescura do que ali se vende é uma das chaves para o sucesso dos negócios da Praça. Que o digam Leonel Figueiredo e Donzília Figueiredo, ambos comerciantes de fruta. São cunhados e trabalham ali com dez anos de diferença (ele há 28, ela há 38), sem fazer concorrência um ao outro. Cada um tem os seus clientes fixos, e segredos nada secretos para os conquistar, como tornar a banca de fruta mais vistosa. Donzília vende frutas e legumes, alguns deles produzidos de forma caseira, e Leonel recheia a sua banca com fruta do Poceirão e da região Oeste, como Torres Vedras e Alcobaça – pêssegos, maçãs e pêras, por exemplo.
Frescos são também os queijos que se alinham na montra da Lojinha da Celeste, aberta há 45 anos. Sejam de Setúbal, Azeitão ou de Nisa. “Tenho todo o tipo de queijos”, diz Maria Celeste, de 70 anos, “e graças a Deus não tenho queixa”. Os clientes procuram-na, e não raras vezes de várias gerações da mesma família. Com queijo no saco, impõe qualquer lista de compras que se compre também pão, e no mercado oferta boa é o que não falta. Há 83 anos que no espaço que hoje é da filha de Fernanda Leitão se vende pão da Lagoinha, da Vidigueira e de outras partes, e mais recentemente, pães de milho com girassol, de espinafres, beterraba e centeio, sem glúten. Apenas um exemplo de como um mercado tradicional consegue acompanhar as tendências modernas de consumo. Já na Pastelaria Padaria de Helena Antunes, que ocupa uma das lojas do mercado, a filosofia continua a ser vender pão caseiro amassado à “moda antiga” e cozido em forno a lenha.
O Mercado do Livramento não se esgota nas suas bancas, tendo também lojas em baixo e no piso superior, como boutiques, cafés, engomadoria, loja de artigos de pesca, cabeleireiro, esteticista e ateliês, entre outros espaços comerciais. No piso térreo, encontra-se o Talho 30, fundado pelo avô de Hélder Antunes e onde se compram carnes “cortadas à medida” – de vaca, porco, borrego, frango, peru e muitas outras – e o Talho 31, outro negócio de família pelo qual Carlos Baptista, de 61 anos, dá actualmente a cara. E também o café de Maria Manuela, com um balcão recheado de tortas de Azeitão, pastéis de nata, queijadas de requeijão e tartes, por exemplo.
Também ali funciona, por sua vez, a Garrafeira do Mercado, com Lino Capelo sempre pronto a atender os clientes. “Vim para cá com 16 anos, já tenho 63 anos. É aqui que governo a minha vida”, conta, apoiado no balcão. As garrafas de vinhos e moscatéis da região enchem as paredes da loja e inspiram um brinde aos 143 anos de existência do Mercado do Livramento. Tchin-tchin! E que venham, pelo menos, mais 143!
O mercado e o seu painel de azulejos
O Mercado do Livramento, situado na Avenida Luísa Todi, foi fundado em 1876, reconstruído entre 1930 e 1940 e “reinaugurado” em 2013 após obras de requalificação que lhe conferiram um novo aspecto logístico, comercial, cultural e visual. A sua fachada pintada de cor de salmão não deixa ninguém indiferente, mas um dos aspectos que mais o define e qualifica é o enorme painel de azulejos neobarroco, da autoria de Pedro Jorge Pinto e datado de 1929, que forra toda a parede ao fundo. Composto por quase 5700 peças, nele se pode ver representações das lides da pesca, do sal, da lavoura, do mercado e da cidade no início do século XX. O painel, recorde-se, foi inteiramente reconstruído e colocado no sítio original depois de a parede onde estava ter ruído, durante as obras de requalificação do mercado, em 2013. A recuperação foi financiada com a ajuda da Fundação Buehler-Brockhaus, constituída por um casal alemão radicado em Setúbal e confesso admirador daquela obra de azulejaria de grande valor histórico e afectivo para os setubalenses. Por ser desde sempre um ícone e estar inserido nos roteiros turísticos, o Mercado do Livramento é hoje visitado por milhares de turistas de todo o mundo, recebendo pontualmente concertos, espectáculos e outros eventos.