Grupo tem vindo a fazer da cidade de Setúbal uma galeria a céu aberto, mas para artistas Portugal ainda é um país sem “liberdade para criar”
O número 53 da Avenida do Alentejo, em Setúbal, já foi uma garagem, mas desde há cinco anos que o pequeno espaço de dois pisos se transformou no estúdio dos Explicit Citizens, grupo de artistas independente que espalha murais coloridos por toda a cidade.
São dez metros quadrados apetrechados de adereços artísticos, que levam qualquer um a duvidar que é no espaço reduzido que o trio faz nascer os protótipos dos trabalhos de vastos metros que está habituado a criar.
A subir para o piso superior, João Murta, um dos elementos do grupo, curva-se instintivamente para evitar a trave e avisa: “Cuidado com a cabeça”. Há muito que se habituaram a fazer da garagem a sua segunda casa, mas nem por isso se conformaram com as condicionantes do espaço.
“Tudo o que queríamos era um estúdio de criação com espaço suficiente para pintar uma tela em pé”, diz David Martins, um dos artistas. “Já aconteceu termos de dividir uma tela ao meio e estarmos a pintar metade de cada vez na horizontal. Se acaba por ficar bem? Sim, mas poderia ficar muito melhor”, garante.
Desde cedo que a arte entrou na vida de João e David. “Ainda éramos miúdos quando começámos a pintar juntos”, relembram. A formação artística de que se orgulham foi construída ao longo da adolescência, de latas de ‘spray’ e pincel nas mãos pelas ruas de Setúbal.
À excepção do terceiro membro do colectivo, Filipe Serralha, os dois pintores vivem inteiramente da arte e, nos últimos anos, têm debatido com a Câmara Municipal de Setúbal (CMS) a possibilidade de erguer uma oficina de criação para os vários artistas do município, o que ainda é apenas uma miragem.
“Setúbal tem armazéns devolutos a cair aos bocados”, critica David Martins. “Já dissemos [à CMS] que não nos importamos de ficar responsáveis por toda a requalificação, mas não há vontade da outra parte. É mais fácil vir um empresário comprar tudo do que colocar os artistas numa zona que poderia ser rentável”.
Para lá da beleza, uma forma de expressão
Desde murais em homenagem a figuras históricas na Rua Ramalho Ortigão, ao mais recente embelezamento na fachada dos edifícios da antiga urbanização da CHE Setúbal, os Explicit Citizens são dos principais responsáveis pela galeria de arte urbana em que a cidade se está a tornar.
Mas, aos olhos de João, o trabalho que é encomendado por parte das entidades locais trata-se somente disso: embelezamento. De fora fica todo o sentido crítico e interventivo que gostariam que a arte assumisse no município.
“Para muita gente, a arte ainda é meramente decorativa. Temos de pintar só o que é bonito”, desabafa o artista. “Queremos fazer obras que choquem e perturbem num bom sentido, que deixem as pessoas a pensar, mas esses projectos são sempre recusados. É mais fácil pintar uma menina com uma flor porque se sabe que vai ser aceite”, acrescenta David.
Há poucos meses, o grupo aventurou-se a ilustrar um muro degradado perto do estúdio com uma pintura que “contrasta” com o que costumam fazer. A obra, uma série de desenhos sobrepostos que dão a sensação de ser um corpo a levitar, pretendia representar o “limbo da vida”. “Como quando estamos acordados, mas presos dentro de nós próprios”, explica David.
Para quem passava, o significado era outro. À excepção dos escassos elogios, palavras como “morte” e “assustador” foram as que mais se ouviram. No final, a pintura acabou por ser apagada e o muro ganhou um tom azulado. “Pacífico, como se nada tivesse acontecido”, diz João.
Falta de educação para a arte em Portugal
Na pequena garagem, a razão para não existir “liberdade para criar” parece óbvia: “Não há educação para a arte em Portugal”, asseguram.
“Vemos artistas lá fora [no estrangeiro] a abordar temáticas completamente diferentes, a fazer a diferença através do seu trabalho e é tudo bem aceite. Aqui, as pessoas têm medo”. Para David, a prova da pouca receptividade dos portugueses espelha-se no sentimento que é expresso em relação ao graffiti.
“É aquela forma de arte que, apesar de ser boa, nunca vai ser boa. Se montarmos o nosso ‘estaminé’ na rua e estivermos a pintar a pincel, ninguém nos diz nada. Mas, se chegarmos com latas de tinta, passados dez minutos aparece a polícia”, conta o setubalense.
Entretanto, os dois pisos do pequeno estúdio vão ficando repletos de ideias e propostas que o grupo se vê obrigado a guardar na gaveta. A solução, acredita, é fazer dos espaços abandonados as telas para os projectos que ninguém quer aprovar. “Pode ser que, um dia, alguém repare neles”, exclama David.