Documentário ‘Sempre!’ compõe mural iconográfico da Revolução do 25 de Abril

Documentário ‘Sempre!’ compõe mural iconográfico da Revolução do 25 de Abril

Documentário ‘Sempre!’ compõe mural iconográfico da Revolução do 25 de Abril

Filme de Luciana Fine revive as imagens e sons da revolução. Depois da estreia mundial, chega este sábado a Setúbal, pela ligação particular com O Setubalense

O documentário Sempre, da realizadora italiana Luciana Fina (que trabalha em Portugal há mais de 30 anos) propõe um diálogo sobre o tempo e os vários períodos pós-revolucionários. Já neste sábado, dia 26 de Abril, às 16 horas, no Cinema Charlot, a realizadora apresenta a sessão e conversa com o público.

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A ideia era desenhar uma instalação e um documentário com imagens de arquivo (de televisão e de cinema). E através dele, e de todos os seus raccords – ou seja, a montagem de imagens de outras épocas, por vezes com som captado recentemente -, fazer ecoar as reclamações e as lutas de outrora, mas que são também as de hoje. Um eco que se sente tanto nas imagens (e nos sons) das lutas estudantis de 1969, em Coimbra, como nos protestos recentes sobre a greve climática, a defesa da cultura, o direito à habitação.

Este é um filme que se constitui, ele próprio, como um mural do tempo. Como uma oscilação entre o que se passou ao longo destas cinco décadas. Confirmando, afinal de contas, esse ‘sempre’, com tudo aquilo que representa. E o que representa? A origem parte da inspiração do Presidente, na altura, Jorge Sampaio, ao encontrar o slogan adequado que servisse de denominador comum à Revolução dos Cravos. Pois claro, ’25 de Abril, sempre!’

Mas a esse ‘sempre’ acrescenta Luciana um ‘agora’, a funcionar como “a ideia de algo que se repete e que volta a aparecer aos nossos olhos”, como referiu na passada terça-feira, na apresentação do filme na Cinemateca, na presença do actual director Rui Machado e do anterior José Manuel Costa, impulsionador do projecto. A expressão justifica-se, segundo a realizadora, tanto mais que “afirma a recorrência, sobretudo com a guerra na Europa (quase 80 anos depois do último grande conflito) e depois da libertação de décadas de fascismo que tiveram os nossos países.” Recorde-se que a data de 25 de Abril representa para a Itália, num excerto evocado logo no início do filme, a memória e a comemoração da libertação das tropas nazis. Sim é um filme que sugere um jogo do tempo – do tempo que passou, mas sobretudo do que está a passar. Do tempo que vivemos e do que vamos viver já a seguir.

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22º Doclisboa | Sessão de Abertura | Sempre | Luciana Fina

Entre o ‘Amor’ e a ‘Revolução’

Há um longo e lento movimento de câmara lateral a acompanhar as letras da palavra ‘Sempre’, como que a pesar cada uma delas e receber o seu significado. Porque este filme está sempre a dizer-nos que ‘sempre’ é hoje.

Na sua génese está a montagem de 48 contribuições de artistas diferentes (sejam excertos filmes, participações, intervenções). Uma forma de recordar os 48 anos de fascismo, mas também a representação artística no mural criado a 10 de Junho de 1974, na Galeria de Arte Moderna/Mercado da Primavera, em Belém, em homenagem ao MFA, a partir da intervenção de 48 artistas, infelizmente destruído por um incêndio em 1981. Em todo o caso, estes “são gestos que se desdobram no tempo, também nos dos cineastas e que aqui são convocados na poética da montagem”, como explicou Luciana.

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No entanto, esta é também a história de um certo cinema português, retractando esse país em diversos segmentos de filmes icónicos. Há até certo oscilar entre dois deles, que se parecem completar nas suas diferenças. Por um lado, é a poesia a respirar ficção, no registo do singular documentarista António Campos, em A Invenção do Amor (1965). Aí, escuta-se a voz de um comunicado da autoridade a informar a procura de um homem e uma mulher, procurados por terem descoberto o amor; do outro lado, ou no seu reverso, Revolução, o filme mosaico e artístico de Ana Hatherly, impregnado pela vertigem da montagem da iconografia política que explodiu nas ruas.

Rui Machado, director da Cinemateca, Luciana Fina, José Manuel Costa, ex-director da Cinemateca (Foto: PP)

Pelo meio, somos recordados da revolução estudantil de 1969, digamos assim, um rastilho na origem do início de algo que estava para acabar. E dos trechos de clássicos como Os Verdes Anos, de Paulo Rocha (1963), As Armas e o Povo, filme colectivo realizado durante o 25 de Abril e os dias que se seguiram (1975), Deus, Pátria e Autoridade, de Rui Simões (1975), Vamos ao Nimas, de Lauro António (1975), Trás-os-Montes, de Margarida Cordeiro e António Reis (1976), Dina e Django, de Solveig Nordlund (1981), entre tantos outros documentos. Sempre entrecortados por diversas cenas de uma luta de classes, algures entre a memória da festa, com celebrações e música dos nossos poetas e cantautores (vemos Sérgio Godinho, Zeca Afonso, José Mário Branco, Ary dos Santos, entre outros) ou a evocação de encenações teatrais nas colónias, procurando resgatar o que já foi. Afinal, vinhetas que se agrupam na nossa memória, tal como as diversas pinturas criadas em homenagem do MFA.

Sim, viveu-se o Verão Quente, nesse ano de 1975, em tempos de PREC (Processo Revolucionário em Curso). Altura em que estavam em cima da mesa a discussão de vários temas fracturantes, como a descolonização ou a emancipação da mulher. E vem-nos à memória a reportagem da RTP, feita por Fialho Gouveia às Três Marias (Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno), onde o repórter se queixa do teor algo ‘chato’ do estilo das Novas Cartas Portuguesas; ou até a manifestação convocada pelo Movimento de Libertação das Mulheres, ainda em Janeiro desse ano, nas ruas, boicotada por uma “manifestação de impotentes” no Parque Eduardo VII, em Lisboa.

A orgânica de Sempre inclui ainda o olhar ‘de fora’ de vários cineastas que vieram registar o que se passava nesse pacato país no sul da Europa. Seja o de Robert Kramer (autor de Cenas de uma Luta de Classes) ao analisar uma fotografia de Vasco Gonçalves e Otelo num jornal, deixando entrever sinais do que haveria de ser, ou o do alemão Thomas Harlan, que filmou a ocupação da herdade Torrebela, no filme homónimo; mas é também a voz do italiano Nanni Moretti, a recordar, a sua viagem a Portugal. No fundo, está tudo ligado. Sempre. E agora.

Entrevista Luciana Fina: “Sempre é a poética de dialética com o presente”

Declarações da cineasta a propósito de Sempre.

“A poética do filme é feita de modo a pensar que a montagem é algo que não narra as ligações, mas sugere que o público posso descobri-las e encontrá-las a cada sessão. Para mim, trabalhar sobre a Revolução e a História nesse sentido é superimportante porque é entregar uma responsabilidade relacional ao público e à sua memória. Por sere este tipo de cinema, o potencial é incrível.”

“Estamos numa época em que o primado da força parece afirmar-se diante de todos aqueles valores e direitos que trabalhámos durante as últimas gerações. Há uma inquietação enorme em mim.”

“Devo dar graças ao cinema por me dar a energia e a capacidade de acompanhar um tempo revolucionário. Não só de o documentar, mas também de o alimentar e animar pelo cinema. O cinema tem feito um trabalho exemplar. Para mim, este filme é também uma homenagem a todos os artistas e cineastas que conseguiram interferir na história e ter estes gestos determinantes.”

“O grande exercício ou desafio não é voltar ao idêntico. Não vamos olhar para as imagens com a nostalgia do que foi, mas ler nelas (com toda a energia que coloquei na montagem) a energia de uma possibilidade. Não é um retorno do idêntico, mas o retorno de uma energia de uma possibilidade que muito nos servia nesses tempos em que se registam tantos conflitos.”

“Esta é também uma homenagem ao cinema. Graças ao trabalho enorme de restauro e digitalização destes filmes que agora circulam no país e internacionalmente. A poética do ‘Sempre’ é a poética de uma dialéctica com o presente através do som em que ecoam os tempos que vivemos”.

O papel da ardina d’O Setubalense na revolução

Luciana Fina descreve o que sente diante das imagens de uma menina vendedora do jornal ‘O Setubalense’, num excerto do filme do Amílcar Lyra (O Setubalense, de 1976):

“Esse foi um dos primeiros excertos que quis utilizar na montagem. O meu repto era mesmo falar das pessoas. Do povo que aderiu à revolução e modificou esse processo todo. O filme permitiu-me essa proximidade do indivíduo, sobretudo de uma mulher no seio do processo mais complicado que foi restruturar a economia do país. E a postura desta jovem a gritar pela rua ‘O Setubalense! O Setubalense!’ pareceu-me uma belíssima forma de participação solitária. Mas uma contribuição muito bonita e determinada para o processo revolucionário. O filme acompanha bem essa ideia, muito bonita, da visita dos jovens ao jornal e cada um com o jornal na mão. Gostei muito da representação dela dentro das imagens de uma manifestação. Bem como a clareza dos operários junto das máquinas e do trabalho.

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