O SETUBALENSE acompanhou o movimento do comércio mais antigo da cidade, distinguido em 2020 com Medalha de Honra
Homenageados pela Câmara de Setúbal com a Medalha de Honra da Cidade na categoria Comércio, a Adega dos Garrafões, as pastelarias Capri, Abrantes e Bambu e a Ourivesaria Pedroso representam casas emblemáticas da histórica baixa setubalense. E em ano atípico, com a Covid-19 a comprometer seis meses de actividade, todos os seus proprietários são unânimes nas contas: o volume de negócios desceu, mas fechar portas está fora de questão.
Aberta ao público na Rua de Arronches Junqueiro, “pelo menos desde 1912”, a Adega dos Garrafões mantém a imagem de típica adega portuguesa onde os ‘bons garfos’ se sentam à mesa sem tempo contado. E em ano de distinção, o seu actual gerente, Miguel Agostinho, assume a Medalha de Honra como “uma forma de distinguir a baixa” e todo o trabalho que tem sido realizado naquela zona da cidade.
Depois de acompanhar os últimos clientes no horário de almoço, Miguel Agostinho recebe O SETUBALENSE para recordar como, há 14 anos, assumiu o comando da Adega dos Garrafões.
Filho de pai setubalense e mãe alentejana, o actual proprietário do negócio confessa que tomou a decisão de investir na restauração por ser “um apaixonado pela gastronomia portuguesa”. Afinal, cresceu ao redor da cozinha, tantas vezes a ver o pai preparar especialidades e, da casa dos seus avós, recorda “os diferentes pratos que sempre havia em cada refeição”.
Ao chegar à Adega dos Garrafões decidiu manter a tradicional imagem da casa, com os seus antigos azulejos e nas paredes retratos de outras épocas. É neste ambiente de taverna portuguesa com charme renovado, que os clientes, “a maior parte frequentes”, apreciam a gastronomia tradicional.
Ali cheira a iscas à portuguesa, plins e esquilhas com arroz de tomate ou grelos, migas com beterraba, frango frito à passarinho, caldeirada e tortilha de camarão.
Tudo faz justiça à história da casa, desde a chegada à despedida.
“A família Venâncio da Costa Lima foi a primeira proprietária”, recorda Miguel Agostinho. Desde então a Adega dos Garrafões passou por várias gerências, entre elas a de Ti Zeferino, que tinha uma forma muito peculiar de trabalhar. “Fazia o bacalhau, as iscas e outras iguarias e depois colocava a comida numa mesa onde os clientes se serviam sozinhos. No fim, eram até os clientes que faziam a sua conta”.
Hoje, a proximidade ainda é a marca da casa. Miguel Agostinho recebe os clientes e acompanhando-os até à despedida, quem sabe com uma sericaia ou um arroz doce. E é rumo à sobremesa que O SETUBALENSE segue para o Largo da Misericórdia.
Rota do açúcar
Saindo do número 103 da Arronches Junqueiro, no Largo da Misericórdia o primeiro olhar vai para o movimento ininterrupto da pastelaria Capri, sob o olhar atento e atendimento célere dos irmãos António e Nuno Costa.
A casa abriu portas em 1957, pela mão de Alfredo Figueiredo da Silva, oriundo de Oleiros, Castelo Branco.
Apenas em 1978 a sua propriedade e gerência foi assumida por José Alves da Costa, tio de António e Nuno. E foi nessa época que o salão adquiriu a decoração que deixa a Capri na memória de setubalenses e turistas.
“No tecto, as peças de azulejo são da fábrica Viúva Lamego. Já o painel da parede, um retrato do Jardim do Bonfim, foi pintado à mão por outro artesão”, explica Nuno Costa. Os pormenores concretos da história apagaram-se um pouco entre gerações. Mas os segredos da pastelaria e o fabrico próprio não.
“Os laços são a especialidade mais procurada pelos setubalenses, depois os pastéis de nata, o sortido húngaro e o Bolo Rei. As empadas, os croquetes”.
Motivos para Nuno Costa considerar a distinção com a Medalha de Honra da Cidade merecida e “um reconhecimento pelo serviço que a casa tem prestado aos setubalenses e turistas, acabando também por divulgar Setúbal”.
Com a Capri a engalanar o número 33 do Largo da Misericórdia, a rota segue pela Rua Álvaro Castelões até cruzar com a Estevam de Vasconcelos. Rua onde o número 34 é a casa da Pastelaria Abrantes há 98 anos.
De portas e tectos altos, a Abrantes, como é conhecida entre os setubalenses, ainda mantém a inspiração art déco, ou não tivesse sido fundada em 1922, época áurea deste estilo.
“Receber a medalha é um orgulho e tem grande significado”, comenta Adélia Ribeiro, actual proprietária da Abrantes. Uma conquista que apenas considera possível “devido ao trabalho dos colaboradores e dedicação dos clientes”.
Também senhora do fabrico próprio, a casa é conhecida pelo “doce de laranja, pastéis de nata, jesuítas de marmelada e gila, tortas, discos, bolos de aniversário. E, claro, pelas amêndoas caramelizadas”. Mas o seu Bolo Rei é o que mais marca a diferença. Uma receita exclusiva, “de massa mais compacta e parecida com a de um biscoito”.
Enquanto não chega o tempo daquele bolo rei é preciso seguir em frente, através da Praça de Bocage e continuar pelo bairro da Fonte Nova até encontrar e Bambu, de frente para a Praça Marquês de Pombal. Está ali há 46 anos, sob o comando de Rosa Idalina Arnuão e do seu marido, criador das merengagens “que levam setubalenses e lisboetas a procurar a Bambu”.
Dona Lila, como é conhecida entre empregados e clientes não tem dúvidas sobre o que distingue a sua casa de outras. “Especialidades como os queijinhos e as laranjinhas, os duchesses e os parisienses. Iguarias que acredita serem diferentes “pelo brio, carinho e amor com que se fazem”.
Uma casa para cinco gerações
O regresso ao coração da baixa tem como destino a Rua Dr. Paula Borba e encerra, por agora, a rota do açúcar.
Ali permanecem algumas das casas mais antigas da cidade, como a Ourivesaria Pedroso.
Aida Teixeira, actual proprietária, afirma que a Ourivesaria Pedroso “é a loja mais antiga da cidade” e está entre as seculares do país. De portas abertas desde 1847 viu nascer a república, findarem ditaduras e crises e renascerem momentos de prosperidade. Firme no número 79 e sob a gestão de cinco gerações, tem muitos setubalenses na carteira de clientes, “mas também é reconhecida por turistas, que procuram marcas nacionais e internacionais” como Eugénio Campos, Ti Sento e Unode50.
Covid-19 Restauração teme tempos de incerteza
Miguel Agostinho encerrou a Adega dos Garrafões de 17 de Março a 18 de Maio. Depois de reabrir portas “alguns clientes voltaram, outros ainda não”, comenta. “O que levou a uma quebra de 70 a 80%”.
Para o empresário “encerrar a restauração durante dois meses foi um erro que o Governo já terá percebido” e acredita que agora tudo será diferente, “porque estamos mais bem preparados e no início da pandemia havia grande incerteza”.
Na Capri, Nuno Costa procurou manter portas abertas, “com o máximo de rigor possível, para os clientes continuarem a encontrar um ambiente acolhedor e seguro”.
Ainda assim a pastelaria teve um período de lay-off e encerrada no mês de Abril. A actividade foi retomada em Maio, “mas com quebras na ordem dos 60%”, que apenas em Julho começaram a ser recuperadas.
Os últimos meses também têm sido difíceis na Abrantes, no entanto, “fechar portas em definitivo está fora de questão”, afirma Adélia Ribeiro no comando de uma casa que também aderiu ao lay-off e, “só em Agosto, enfrentou uma quebra de vendas de 50 a 60%”.