A jornada das oito horas e dos 20 escudos. Outras lutas e o ‘travão’ da pandemia
A União de Resistentes Antifascistas Portugueses (URAP), que movimenta um núcleo no Seixal, como em muitos outros pontos do País, nasceu a 30 de Abril de 1976, pelo querer de homens e mulheres com provas dadas na luta contra a ditadura fascista. Todavia, para se buscar indícios dessa luta e desse grupo de resistentes é preciso recuar no tempo.
A URAP, durante os tempos negros da ditadura, activou a Comissão de Socorro aos Presos Políticos, deu apoio material e jurídico aos presos políticos e às suas famílias, denunciou, no País e além-fronteiras, a situação dos que jaziam nas masmorras da PIDE e a repressão que se abatia sobre o povo português, bateu-se, correndo todos os riscos, contra a política bárbara de Salazar e dos seus seguidores.
Noventa presos políticos no Seixal
Em véspera de comemoração do 25 de Abril de 1974 e de homenagem à Liberdade, O SETUBALENSE encontrou-se com Joaquim Saiote, um dos cerca de 50 activistas do núcleo do Seixal da URAP. Tinha na mão uma lista, referente ao concelho, dos que haviam passado pelas masmorras da PIDE. “São noventa, com todos os elementos de identificação, desde a data e local de nascimento. É claro que a grande maioria já faleceu”, afirma, com visível tristeza.
A elaboração desta lista perseguiu um objectivo: “Apresentá-la à Câmara Municipal do Seixal, contactar os familiares e, a partir daqui, pensar num monumento de homenagem aos resistentes antifascistas do concelho, seja em forma de mural ou de uma qualquer outra expressão artística. Adiante se verá com a autarquia, com a qual até já temos uma reunião agendada”, salienta Joaquim Saiote.
Entretanto, a URAP vai assinalar, no dia 27 deste mês, o 47.º aniversário da libertação dos presos políticos das cadeias de Peniche e Caxias. O programa inclui uma visita, da parte da manhã, e uma cerimónia de homenagem junto ao Museu Nacional de Resistência e Liberdade, da parte de tarde. “Quanto ao 25 de Abril, integraremos, como sempre temos feito, o desfile pela avenida da Liberdade, em Lisboa”.
Diz Joaquim Saiote que a organização de que é membro sente, como todas as outras, os efeitos da pandemia, que lhe reduziu drasticamente a capacidade de iniciativa. “Antes da pandemia, realizámos, na Cruz de Pau, um jantar com 100 membros e amigos da URAP. Serviu para confraternizarmos e acertarmos a agenda da organização. Além disso, costumávamos fazer excursões, visitas, debates, encontros para dar a conhecer o que foi o fascismo em Portugal. Com a chegada do vírus, toda esta actividade foi suspensa. Suspensa, até, ficou a cobrança de quotas, que é a nossa única fonte de financiamento”, revela.
Oito horas e 20 escudos
Joaquim Saiote, lembrando tempos amargos, tem na memória “a primeira semana de Maio de 1962, quando foi implantada a jornada de trabalho de oito horas e a jorna de 20 escudos. Estava, nessa altura, em Montemor-o-Novo”, mas recorda que aquelas normas não foram respeitadas em todo o lado. “As oito horas de trabalho resultaram de uma luta carregada de perigos levada a cabo por numerosos camaradas. Muitos deles foram presos; outros, emigraram, como o saudoso António Gervásio, cuja mulher tinha que se apresentar todos os dias no posto da GNR”.
Joaquim foi trabalhador rural, desde os 12 anos, com os quatro irmãos e cinco irmãs, todos mais velhos do que ele, até ir para a tropa. Foi mobilizado para Moçambique, onde esteve “28 meses e 4 dias”. Depois, tirou o curso de serralheiro, no Centro de Formação Profissional do Seixal.
Volta a lembrar: “Esta era uma zona densamente industrializada e de forte fraternidade operária. Mesmo após o 25 de Abril, laboravam aqui a Quimigal [Barreiro], Siderurgia, Fábrica da Cortiça, Mundet, Construtora Moderna e Fábrica de Lanifícios [no Seixal], Arsenal do Alfeite, Lisnave, Parrison, Olho de Boi e Sociedade Reparadora de Navios [Almada]. Quantos milhares de operários não ocupavam estas indústrias?”.
Na Lisnave, Joaquim Saiote deu formação. “Faziam-se lá bons operários. Mas depois, com os contratos a prazo e os recibos verdes, começaram a desmantelar esta sólida cintura industrial”.
Não misturamos as coisas
Sobre quais as relações da URAP com o Partido Comunista, diz que a organização “defende uma sociedade justa e o PCP também”. “Até poderá haver resistentes que sejam militantes do PCP, mas não misturamos as coisas. O PCP tem a sua ideologia, e nós defendemos outros propósitos para a URAP. Digamos que, estando do mesmo lado da barreira, temos maneiras de pensar e agir próprias”, retorquiu.
União de Resistentes diz não a museu sobre Salazar
A União de Resistentes Antifascistas Portugueses (URAP) “está fortemente contra a construção do museu Salazar”, afirma o resistente antifascista Joaquim Saiote, que lembra que, a 22 de Fevereiro de 2020, foi entregue na Assembleia da República uma petição nesse sentido subscrita por 10 mil e 396 cidadãos, 204 dos quais ex-presos políticos.
Joaquim Saiote verbera também o comportamento do Presidente da República em relação a Marcelino da Mata. “Foi ao funeral, esquecendo-se que é presidente de um Estado democrático, enquanto o outro era um representante do Estado Novo”. Palavras duras mereceu-lhe também o voto de pesar levado à Assembleia da República. “Quantos militares portugueses morreram, durante os 13 anos de guerra colonial, no mais profundo silêncio, apesar de terem prestado relevantes serviços à nação”, questiona.