Desde a disposição das instalações à alimentação fornecida, todos os passos são calculados em prol da saúde e bem-estar das espécies
O som, à entrada, é característico, onde prevalece o gritar das cegonhas, o grasnar das gaivotas e até dos dois grifos que actualmente se encontram em recuperação. Já o espaço é simples e acolhedor, para que as espécies debilitadas e vulneráveis se possam sentir em ‘casa’, como se estivessem no seu habitat.
Desde Tróia a Odemira, é para o Centro de Recuperação de Santo André (CRASSA), em Santiago do Cacém, que, na grande maioria dos casos, são transportados os animais selvagens que precisam de ajuda para sobreviver. O processo parece simples – recepção, recuperação e devolução dos animais à natureza -, mas “de simples nada tem”, começa por garantir Carolina Nunes, bióloga e responsável pelo CRASSA, a O SETUBALENSE.
Ao espaço chegam as mais variadas espécies, consoante a altura do ano. “Podemos receber tudo o que é animal selvagem autóctone. Recebemos principalmente aves, como cegonhas, gaivotas, corujas-do-mato, mochos-galego, andorinhas e andorinhões”, explica.
Já mamíferos surgem “muitos ouriços europeus, mas também raposas, ginetas, saca-rabos e pontualmente lontras e morcegos”, enquanto que “répteis aparecem muito menos”. Actualmente, estão em recuperação no centro de Santo André “13 animais” que ou estão “feridos e debilitados” ou são “crias que caem dos ninhos e são encontradas sem os progenitores”.
“O pico máximo acontece na Primavera/Verão, em que os animais nos chegam principalmente pelas mãos das autoridades, como do Serviço de Protecção da Natureza (SEPNA) e do Ambiente da GNR ou dos vigilantes da natureza do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), mas também por populares”, esclarece.
No momento em que dão entrada no CRASSA, começam o seu ‘percurso’ na enfermaria, onde “lhes é dado um número de identificação e é preenchida uma ficha, onde se regista todo o procedimento, como medicamento, mudanças de instalações e evolução do estado de saúde”.
Isto, porque o equipamento está preparado para as diferentes fases da recuperação dos animais. “No início ficam no internamento, a que chamamos de ‘sala dos bebés’, que é uma sala com transportadores e boxes, onde a temperatura é controlada. É onde ficam as crias ou quando estão muito doentes”.
Quando se começam a sentir melhor “e a crescer”, são transferidos para “as mudas interiores, ou seja, para instalações maiores, onde podem utilizar poleiros e onde os espaços são adaptados à espécie”. “É o que nós chamamos de enriquecimento ambiental, que é eles sentirem-se aqui como se sentiriam na natureza. Diminui imenso o stress e permite que expressem comportamentos naturais”.
Já numa fase quase final, são colocados “em espaços exteriores, com o tecto mais aberto, onde experienciam chuva, frio e calor, tal como na natureza”. Mesmo a terminar a sua ‘estadia’ no CRASSA, passam para “os túneis de voo, que são mais compridos”.
Para contribuir para o seu crescimento, refere a bióloga, é “bom juntar todos os bebés da mesma espécie num único sítio, para que eles aprendam uns com os outros, ou então colocar espelhos, para quando é um só”. O importante é o cuidador “evitar ao máximo o contacto directo com o animal, para que eles não o associem à comida”.
“Temos sempre de nos esconder, recorrendo a uma luva que tente imitar o que seria o progenitor, com um bico, ou damos a comida com eles de costas para nós. Queremos que os animais saiam daqui tão ou mais selvagens do que quando chegaram”.
Desde os anos 90 a contribuir para a recuperação da fauna selvagem
A história do Centro de Recuperação de Animais Selvagens de Santo André, um “dos três espaços dedicados à fauna selvagem geridos pela Quercus [Organização Não Governamental de Ambiente], iniciou-se nos anos 90, a partir do Grupo Lontra, constituído por activistas da região”.
Na época, em que a zona ainda “não era área protegida”, o grupo “começou por reabilitar o moinho de água existente, que pertence ao ICNF, e começou por trabalhar na educação ambiental”. “Uns tempos depois, os activistas juntaram-se à Quercus e passou aqui a ser a sede do núcleo regional no litoral alentejano. Aos poucos foi nascendo o CRASSA como centro de recuperação, que agora funciona todos os dias, com uma capacidade máxima para cem animais”, esclarece Carolina Nunes.
A bióloga tornou-se responsável pelo espaço “há dois anos e meio”, percurso que confessa “não ter sido fácil nem simples, mas muito gratificante”. Para alcançar os objectivos traçados, diz contar “com a ajuda de bastantes mecenas”.
“Exemplo disso é a Câmara de Santiago do Cacém, a Junta de Santo André, que realiza a manutenção das ervas, o ICNF, as Águas de Santo André, que contribui para a sensibilização da população, e a European Wildlife Services, cujos veterinários ajudam com raio-x e ecografias”.
Também “vários particulares contribuem”, assim como “pequenas empresas, através do voluntariado ou de donativos”. “Depois contamos com os apadrinhamentos, em que qualquer pessoa, família ou empresa pode tornar-se padrinho de um animal selvagem em recuperação. Recebe uma fotografia, o certificado de apadrinhamento, o historial do afilhado e actualizações sobre a sua recuperação. No final é convidado para presenciar o momento mais bonito de todos, que é a devolução do animal ao seu habitat”, sublinha.
Contudo, o principal apoio, garante, surge da parte de voluntários, que “normalmente ficam entre 15 dias e um mês”. “Os de mais longe podem cá ficar alojados, e acabam por ajudar em todas as tarefas. Não é preciso ter conhecimento prévio, basta ter vontade de aprender e respeito pelos animais”.
De manhã realizam-se os tratamentos, de tarde estuda-se
As rotinas diárias são sempre muito semelhantes: de manhã tratam-se e alimentam-se os animais e arrumam- -se as instalações e durante a tarde “realizam-se estudos, análises laboratoriais e promove-se a educação ambiental”.
Para o efeito, o CRASSA conta com um laboratório próprio, onde são “explorados alguns exames complementares ou onde se treinam necropsias, com recurso aos cadáveres”, disse Carolina Lopes, médico-veterinária, a O SETUBALENSE.
Também este trabalho “de estudar os animais que morrem no centro, é muito importante, para que em casos futuros já se saiba como proceder”.
A principal diferença que aponta entre tratar animais domésticos e selvagens, além “do desafio acrescido”, é a “dificuldade em perceber a causa de entrada no centro”. “Não temos forma de obter uma história clínica detalhada. Também o facto de os recursos serem limitados em termos de diagnósticos complementares complica o processo. Nesses casos temos de dar asas à imaginação, para tentar adequar os recursos que temos às diferentes espécies”.
Alimentação é adaptada a todas as espécies e faixas etárias
O cuidado com a alimentação é um dos principais factores que ajuda na recuperação dos animais feridos, motivo pelo qual a responsável pelo centro tenta garantir que “esta seja variada e adaptada à espécie e às diferentes faixas etárias”.
Nesse ‘departamento’ contam com o auxílio do hipermercado Continente de Grândola, que oferece ao centro “os restos de carne e de peixe e, por vezes, alguma ração de cão e gato”.
Já para os “animais com dietas mais específicas, como as andorinhas e os andorinhões, é necessário comprar insectos, nomeadamente tenebrios”. No que diz respeito às aves de rapina, “que precisam de ingerir o alimento inteiro, é preciso comprar pintainhos ou ratazanas”.
“No CRASSA criamos ratos, que servem principalmente para os treinos de caça. Damos às aves de rapina os ratos vivos e elas caçam como se estivessem na natureza, mas também compramos codornizes ou coelhos”.
No entanto, no caso de o “animal não recuperar de todo, é uma questão de ética”. “Se estiver em sofrimento e não houver mais nada a fazer, realizamos uma eutanásia, mas quando estão bem e simplesmente não conseguem voar, declaramos como irrecuperável e ou ficam aqui ou é transferido para outro centro ou parque biológico”.
Bióloga relembra que manter animais em cativeiro é ilegal
Por ser ilegal a população manter em cativeiro elementos da fauna selvagem, assim como “é prejudicial para a sua recuperação”, a bióloga Carolina Nunes refere que, quando encontrado um animal ferido, “devem ser de imediato contactadas as autoridades locais”.
“Há também uma linha, que se chama SOS Ambiente e Território, que esclarece todas as questões. É importante perceber-se que em casa, ou mesmo num veterinário de animais domésticos, não existe a capacidade, a variedade de alimentos, o espaço nem o conhecimento necessários para recuperar estes animais, pelo que mantê-los em casa só irá prolongar o seu sofrimento”, afirmou, a concluir.