Jovem de 16 anos encontrou nas telas o alívio que precisava, numa altura em que as “crises do autismo e epilepsia estavam muito acentuadas”
É de pincel na mão, entre florestas e paisagens, que Raquel Micano diz estar completa. Enquanto desenha, a jovem de 16 anos ‘viaja’ para um mundo só dela, onde encontra paz de espírito e alívio. “Gosto de pintar para me distrair, principalmente quando estou muito chateada”, conta.
A pintura surgiu de forma espontânea em 2017, numa altura em que Raquel “estava com crises muito acentuadas do autismo e da epilepsia”. Um dia, chegou a casa, pegou num papel e começou a “descarregar toda a raiva que sentia” num desenho, como se uma parte de si, que estava adormecida, tivesse despertado.
A mãe, Cátia Palma, e o padrasto, a quem chama pai, aproveitaram a oportunidade e inscreverem-na de imediato em aulas de pintura. “Pinto na Fátima Romão, a minha professora de pintura, na casa dela, duas vezes por semana, até porque a minha casa não tem muito espaço. Ela é muito fixe”, explica.
Hoje, a jovem, que nasceu no Centro Hospitalar Universitário do Algarve, mas veio morar com sete anos para o Pinhal Novo, Palmela, sabe de cor e salteado as técnicas que deve utilizar. “Nunca se deve misturar tinta óleo com tinta acrílica. Faz uma coisa estranha. Fica peganhoso e não dá para pintar”.
Já o barro “é perfeito para compor a tela”. “Quando acho que o quadro não está bom o suficiente, faço a figura que quero acrescentar, como pássaros ou joaninhas, moldo, deixo secar e pinto. Depois é colar directamente no desenho”.
Também o relevo é algo que fascina a jovem. “Gosto, por exemplo, de fazer revelo nas árvores ou nos rios. Dá-me a sensação de vida”. As ideias surgem “da própria cabeça”, de paisagens que vê nos passeios em família ou da internet, “mas nunca copiadas”. “Só me inspiro, mas nunca copio nada igual. Pinto sempre à minha maneira”.
Sobre os tamanhos das telas, gosta de ir variando. “Ainda não fiz, mas hei-de fazer um grande quadro com um reino, do Harry Potter, cheio de magia e de feiticeiros”. Quando não está nas aulas de pintura, vai experimentando novas técnicas. “Em casa gosto de desenhar rostos. Pinto com lápis próprios, com canetas e também já experimentei giz e fiz uma tela em carvão, mas não gostei muito do resultado”.
Com mais de 50 telas finalizadas, Raquel tem já uma opinião formada: “O bom da pintura é que em caso de engano dá para disfarçar”.
Objectivo da pintura passa por ajudar e motivar outros jovens
Com a pintura, Raquel ambiciona vir a ajudar “outros jovens” na mesma situação, no sentido em que pretende que também estes se venham a sentir “compreendidos e aceites”. “Quero motivar outras crianças, para não desistirem dos seus sonhos, apesar dos problemas que têm”.
Além disso, a jovem espera também um dia vir a ser conhecida, começando já a dar cartas nesse sentido. Em 2019, viu os seus quadros expostos na Biblioteca de Pinhal Novo, por iniciativa da professora de pintura e da mãe.
A segunda exposição, inicialmente agendada para o mesmo ano, acabou por ter de ser adiada para 2022, devido à pandemia. Em Abril último, e depois de ter sido infectada com covid-19, Raquel perdeu audição. A mãe, que começou a perceber que a jovem estava a entrar em depressão, decidiu avançar com a mostra para lhe dar um ânimo.
No entanto, Cátia Palma, que dedicou toda a sua vida à Raquel, não esperava tamanho sucesso. As obras da jovem, que estiveram patentes na ASL Tomé Sociedade Vinícola de 8 de Abril a 7 de Maio, ‘desapareceram’ rapidamente e mereceram inclusive a visita da secretária de Estado da Inclusão, Ana Sofia Antunes, à região.
“Gostei muito. Veio mais gente do que eu pensei e adoraram os meus quadros. Acho que as pessoas gostam dos quadros porque são alegres”, afirma.
Apoio da família tem sido “muito importante”
A jovem tinha já falta de audição moderada à direita e grave à esquerda, provocada pela síndrome brânquio-otorrenal, tendo a covid-19 agravado a situação. No passado mês de Maio, com o objectivo de reverter parte do problema, Raquel foi operada e passou de duas próteses auditivas com sistema de FM para dois implantes cocleares.
Diagnosticada igualmente com Síndrome de Asperger e epilepsia de ausência, a jovem tem ainda problemas reumáticos, artrite reumática, escoliose com cifose torácica e um atraso cognitivo no desenvolvimento, que lhe apanha a fala.
O apoio da família, descreve a jovem, tem sido “muito importante”. “O meu padrasto é muito bom pai. Cuida e ama-me muito. A minha mãe também sempre me ajudou, ao procurar respostas para os meus problemas”.
Foi então na pintura que Raquel encontrou uma forma de comunicar com o mundo que a rodeia. Para a mãe, “é como se todos lhe dissessem que é capaz de tudo”.
Futuro ainda não está escolhido, mas intenção é acabar a escola
Profissionalmente, a jovem, que começa no próximo ano lectivo a frequentar o 9.º ano, confessa ainda não saber ao certo o que quer seguir, mas tem já uma certeza: “tem de ser algo que goste”. “A minha intenção agora é acabar a escola até ao 12.º ano. Depois, gostava de ser presidente de um país, professora de artes, médica dos ossos ou médica dos animais, porque adoro cães, gatos e corujas”, enumera.
Em mente tem ainda a ambição “de ser modelo e de lançar uma linha própria de maquilhagem. A nível pessoal, sonha em “ter uma quinta, com uma casa grande”. “Quero ter um jardim, para plantar as minhas flores preferidas, mas sei que tenho de trabalhar para isso. Aquilo que me ensinaram foi que se quero alguma coisa, tenho de trabalhar”.
Raquel Micano à queima-roupa
Idade 16 anos
Naturalidade Faro
Residência Pinhal Novo, Palmela
Área Pintura
Contra as expectativas dos médicos, jovem encanta com os seus desenhos e sonha em tornar-se presidente de um país