Autarca de Almada põe o dedo na ferida. Municípios ‘tramados’ na habitação por incapacidade de resposta da tutela, saturação do mercado de construção e aumento de preços
Frontal e sem receios. Inês de Medeiros, presidente da Câmara Municipal de Almada, disse aquilo que muitos também pensam mas comentam de forma mais contida: “Nalguns casos, o PRR [Plano de Recuperação e Resiliência] foi uma maldição”. A afirmação da autarca, durante um encontro realizado na última quinta-feira em Cascais para debater o problema da habitação na Área Metropolitana de Lisboa (AML), fez jus à velha máxima de que ‘não há bela sem senão’. Bela é a verba disponibilizada pela ‘Bazuca’; o senão é o prazo que os municípios têm para fazer uso dela.
“Para todos os projectos que já estavam em curso, foi óptimo. Nalguns casos, o PRR foi uma maldição. E é bom começarmos a dizer as coisas tal e qual como elas são: que é muito dinheiro a gastar em muito pouco tempo. O resultado prático foi só um: o mercado explodiu”, disse Inês de Medeiros, no decorrer da iniciativa que foi subordinada ao tema “Desafios que Precisam de Soluções”.
A socialista sustentou depois a afirmação com a experiência que Almada tem vivido, no âmbito do investimento na área da habitação com recurso ao PRR, e que acaba por ser transversal a muitos outros municípios. A autarquia, admitiu, ficou com “problemas gravíssimos” ao avançar com projectos e ao deparar-se com a falta de resposta às candidaturas a financiamento apresentadas.
“Pior ainda”, adiantou, é a situação do mercado, que “está saturado porque há PRR em todo o lado, em toda a Europa”, tal como “os preços de construção”, que dispararam. Neste âmbito, Inês de Medeiros foi lapidar: a Câmara de Almada apresentou um projecto por 12 milhões de euros e a estimativa agora é de 24 milhões, fez notar, para, ao mesmo tempo, criticar a burocracia e a demora na resposta às candidaturas por parte do Instituto da Habitação e da Reabilitação (IHRU).
Inês de Medeiros, que é também vice-presidente do Conselho Metropolitano de Lisboa, disse que os 18 municípios da AML “estão absolutamente disponíveis” para estabelecer estratégias para responder à crise da habitação, como foi conseguido na área dos transportes públicos. “Mas temos de ser claros, tem de haver um compromisso claro do Estado (…). Já não quero saber quem é o primeiro-ministro ou o ministro. Ou há uma reforma profunda das entidades intermédias do Estado, seja ao nível da Segurança Social, entidades licenciadoras, APA, ICNF, gestão do território, tudo, e começa a haver a responsabilização por estas entidades, [ou então] é impossível [os municípios colaborarem na resposta aos problemas], alertou.
E justificou a posição com um caso caricato, ao aludir a um projecto que recebeu parecer negativo do ICNF, respaldado na evocação de um despacho do rei D. Carlos, que determinava que a Costa de Caparica estava sujeita ao regime florestal. Mas, não estava. Os serviços municipais, revelou, viriam a constatar a existência de um despacho posterior, assinado por António Oliveira Salazar, que desclassificou a anterior deliberação.
A autarca defendeu a necessidade de uma revisão da legislação dos instrumentos de gestão do território, que permita a desburocratização, maior transparência e celeridade, e frisou ainda que são precisos “parceiros privados para uma resposta a médio/longo prazo” no domínio da habitação.
Presentes no encontro estiveram também Filipa Roseta, vereadora da Habitação na Câmara de Lisboa, Ana Pinho, ex-secretária de Estado da Habitação, e Luís Ferreira, reitor da Universidade de Lisboa. *Com Lusa