Maestro da Banda de Alcochete recorda dificuldade em regressar à música após a partida do pai e antigo maestro, António Menino. Focado no futuro, quer “honrar as raízes e retribuir a confiança” que em si foi depositada
Filho e neto de alcochetanos, Tiago Menino apaixonou-se pela música de forma “natural”, começando a estudar clarinete aos nove anos de idade, sendo que nunca ponderou trocar de instrumento ou desistir. Em entrevista a O SETUBALENSE, o maestro da Banda da Sociedade Imparcial 15 de Janeiro de 1898 recorda a dificuldade que foi voltar a pegar num clarinete após a partida do pai e antigo maestro, António Menino, que será sempre a sua “maior referência”.
Numa altura em que a colectividade comemora os 127 anos de existência, o clarinetista revela que o espectáculo de aniversário da banda, ainda sem data definida, será o momento em que irá ser homenageada “uma das pessoas mais importantes na história da casa”. Quanto ao futuro, garante que pretende continuar a estudar e a evoluir para poder ser “cada vez melhor” naquilo que faz, para “conseguir honrar as raízes e retribuir a confiança” que em si foi depositada.
Quem é o Tiago Menino?
Sobre mim, sou natural de Alcochete, filho e neto de alcochetanos. Comecei a estudar clarinete aos nove anos de idade com o meu pai na Escola de Música da Banda da Sociedade Imparcial 15 de Janeiro de 1898 de Alcochete. Cinco anos depois ingressei na escola de música do Conservatório Nacional em Lisboa e tirei a minha licenciatura no Instituto Piaget de Almada, tendo tido nesse período a oportunidade de estudar um ano no Real Conservatório Superior de Música de Madrid. Depois disso, frequentei o mestrado em performance na Academia Nacional Superior de Orquestra e seguidamente conclui o mestrado em Ensino da Música na Escola Superior de Música de Lisboa. No ano passado conclui também a pós-graduação em Direcção de Bandas e Ensembles de Sopros no Instituto Politécnico de Leiria. Actualmente sou professor de clarinete no Conservatório Regional de Artes do Montijo e maestro da banda da Sociedade Imparcial 15 de Janeiro 1898 de Alcochete.
Como surgiu a paixão pela música?
A paixão pela música surgiu como tudo na vida deve surgir, de forma muito natural. Uma das minha recordações de infância é ouvir o meu pai a estudar clarinete em casa, e ir ver os seus concertos com a minha mãe e os meus avós. É lógico que na altura não adorava, porque tinha de estar em silêncio a ouvir música, mas aos poucos o “bichinho” foi entrando e o gosto foi-se começando a manifestar. Mais tarde, com a minha entrada na banda e depois no conservatório, esse gosto veio-se manifestando cada vez mais, dava por mim a ouvir CDs de música, ou cassetes de concertos que o meu pai tinha em casa. Foi algo muito gradual, o meu primeiro contacto com a música surgiu muito cedo, e aos poucos ela foi entrando cada vez mais na minha vida, até aos dias de hoje.
Porquê a escolha do clarinete como instrumento?
Essa escolha nem me lembro de a fazer. Comecei a aprender música em 1997, com a reabertura da Escola de Música da Sociedade Imparcial 15 de Janeiro de 1898. Nessa altura ainda não eram muitos os professores na escola de música e eu obviamente que fiquei com o meu pai. Quando me apercebi tinha um clarinete nas mãos e já estava a aprender a montá-lo. O que posso dizer é que nunca ponderei trocar de instrumento ou desistir, obviamente que as coisas nem sempre correram de feição, mas esse pensamento nunca passou pela minha cabeça.
Como é ser o maestro de uma banda filarmónica com tanta história?
Obviamente que é um sentimento díspar: por um lado é um orgulho tremendo, por outro lado uma responsabilidade muito grande. Como todos sabemos, a minha escolha para maestro não acontece pelas circunstâncias mais felizes, o que por si só vem reforçar esse sentido de responsabilidade. Depois temos obviamente o peso que é herdar a Banda das mãos do meu pai, e também o legado da própria Banda e o seu percurso brilhante. Ter a Banda de Alcochete, como é carinhosamente conhecida, como a primeira experiência profissional em direcção é uma oportunidade única, mas que também se apresenta como um desafio diário. Conheço bem a Banda e mais do que trabalhar com excelentes músicos, tenho a sorte de contar com grandes amigos, o que torna tudo mais fácil. Não é uma missão fácil e estou ciente de que tenho um longo caminho pela frente de crescimento profissional enquanto maestro, mas sei que o colectivo está sempre unido em prol desta casa e tudo farão para me ajudar e eu a eles, e espero que, em conjunto, possamos continuar a escrever bonitas páginas na história da nossa colectividade.
Qual a próxima grande actuação da Banda de Alcochete?
Este mês de Janeiro a colectividade comemora os 127 anos de existência, estando intrinsecamente ligados à restauração do concelho de Alcochete, no dia 15 de Janeiro de 1898. Teremos o nosso concerto de aniversário, habitualmente considerado como o nosso concerto mais importante do ano, que este ano será ainda mais especial que o normal. Será o meu primeiro concerto de aniversário como maestro da Banda e, mais importante que isso, será o momento em que iremos homenagear aquele que foi uma das pessoas mais importantes na história da nossa casa.
Todo o concerto está a ser pensado como um tributo, iremos estrear uma peça escrita para o momento e dedicada ao meu pai, por um dos mais importantes compositores espanhóis da actualidade, Saül Gómez Soler. Iremos também contar com a presença do maestro Mitchell Fennell, um dos seus melhores amigos, que irá dirigir uma parte do concerto, assim como mais algumas surpresas, que não poderei ainda revelar, mas que estão a ser pensadas para tornar o momento o mais especial possível, e digno da pessoa que ele foi e do tanto que deu à casa durante 50 anos, 25 como clarinetista e outros tantos como maestro.
Qual o momento que mais o marcou na sua carreira?
Felizmente tive vários momentos marcantes ao longo destes vinte sete anos em que toco música. Todos os concursos que venci, quer a nível individual quer como músico da banda, são sempre momentos de felicidade que nos marcam muito. Também através do Festival Internacional de Clarinete de Alcochete, este ano renomeado Festival Internacional de Clarinete António Menino, tive a oportunidade de tocar com agrupamentos históricos do nosso País, como a Banda Sinfónica da PSP ou a Banda da Armada Portuguesa.
A um nível mais pessoal, obviamente que recordo todas as vezes em que tive a oportunidade de tocar a solo com o meu pai, são momentos que guardarei para sempre comigo. Também neste último ano tive vários momentos marcantes, muitos deles não pelos melhores motivos. Tenho obviamente de destacar o meu primeiro concerto como maestro da Banda de Alcochete, na nossa terra, inserido nas Festas do Barrete Verde e das Salinas, perante um Largo de São João com milhares de pessoas. Foi um momento muito emocionante para mim e para toda a banda que irei guardar carinhosamente na minha memória.
O legado do clarinete começou com o seu avô e continuou com o seu pai. Foi uma obrigação seguir o mesmo caminho?
Não, claro que não foi uma obrigação, uma imposição, nem nada do género. Foi sim, tal como já disse, um gosto e um amor a uma arte que foi crescendo cada vez mais, até ser muito óbvio que era aí que residia o meu futuro. O que aconteceu depois disso foi uma enorme responsabilidade, porque a partir do momento em que percebo que queria tocar clarinete a um nível profissional, percebi também que tinha o dever de o fazer muito bem, tinha o dever de honrar o meu nome, que é o mesmo do meu pai e do meu avô.
Foram obviamente duas carreiras distintas neste instrumento, o meu avô como músico da Banda Sinfónica da GNR, e o meu pai como clarinetista da Banda da Armada, onde rapidamente subiu a solista e chefe de naipe. Em simultâneo com tudo isto temos ainda o legado enorme deixado na Sociedade Imparcial, mais especificamente na Banda de Alcochete. O meu avô pegou na banda em 1974, e esteve à frente dos seus destinos durante quase 25 anos.
Trabalhando imenso conseguiu erguê-la aos poucos, ganhando o reconhecimento, primeiro nas praças de touros e depois também nos palcos. Quanto ao meu pai, começou a dirigir a Banda de Alcochete no final de 1998 e, seguindo muito do trabalho que vinha detrás, conseguiu elevar o seu nível artístico a patamares bem altos.
Esteve à frente dos destinos da Banda de Alcochete durante exactamente 25 anos, acabando por falecer poucos dias depois do seu último concerto de aniversário, onde alcançou esta marca, deixando bem enraizado no seio da banda hábitos bem vincados de trabalho, ambição, superação e respeito. Por tudo isto, obviamente que o legado é muito pesado, a história desta casa e das pessoas que nela trabalham é bastante rica, mas acima de tudo isso, é para mim um orgulho muito grande não só estar onde estou, mas também olhar para trás e contemplar o que foi feito, e por quem foi feito.
Após a partida do seu pai, o maestro António Menino, como foi voltar a tocar?
Muito difícil mesmo. Tive vários dias em que não conseguia sequer abrir a mala do clarinete, e quando finalmente a consegui abrir, tive outros tantos para conseguir montar e tocar alguma coisa. Foi com o meu pai que aprendi e era com ele que estudava todas as manhãs, na Sociedade Imparcial 15 de Janeiro de 1898. Era o meu maior crítico, mas também o meu maior apoiante, e foi mesmo muito difícil seguir esta vertente sem ele.
O meu primeiro concerto a solo desde a sua partida foi no passado Novembro, no concerto de abertura do Festival Internacional de Clarinete António Menino, onde tive oportunidade de tocar com a Banda da Armada Portuguesa, banda esta à qual ele pertenceu durante 34 anos. Foi um momento único e emocionante para todos, toquei o último concerto que ele tocou a solo com este agrupamento e era palpável a emoção e o carinho de todos durante todo o concerto. Tal como falámos acima, é mais um daqueles momentos que nunca esquecerei.
Quem são as suas principais influências e referências musicais?
Durante o nosso percurso vão sempre surgindo pessoas no nosso caminho que nos marcam e com as quais nós nos revemos em certas e determinadas acções e atitudes. Agradeço profundamente a todos os meus professores, quer de clarinete, quer mais recentemente de direcção, porque todos eles deixaram uma marca profunda em mim.
Obviamente que se falarmos numa referência única, a maior será sempre a do meu pai, foi com ele que aprendi, foi a ele que ouvi tocar mais vezes e foi sob a sua batuta que toquei mais vezes. A sua identidade musical está profundamente enraizada em mim, mas como disse nós somos a soma de várias aprendizagens, de várias experiências, e eu tenho tido a sorte de poder ter trabalhado com alguns dos melhores. Tudo isto são aprendizagens e ensinamentos que levamos sempre connosco e que nos fazem crescer.
Quais os planos e projectos que tem para concretizar no futuro?
Eu não sou uma pessoa de grandes planos a longo prazo, prefiro centrar-me no presente e no futuro a curto/médio prazo, tentando prestar o máximo de atenção aos pormenores, às pessoas que comigo trabalham e à minha família, que me apoia em todos os momentos. Pretendo continuar a estudar e a evoluir para poder ser cada vez melhor naquilo que faço, para conseguir honrar as minhas raízes e retribuir a confiança que em mim foi depositada.
Pretendo continuar o legado que me foi deixado com a Banda de Alcochete, reforçando um grupo estável, coeso e unido para que juntos possamos evoluir, crescer, superar as dificuldades que nos aparecerem no caminho e continuar o percurso de sucesso que me foi confiado. Desejo continuar a fazer crescer o Festival Internacional de Clarinete António Menino, que foi a pessoa que lutou para o criar e que agora tem o seu nome, tornando-o uma referência ainda maior a nível nacional e internacional. Qualquer desafio que vá aparecendo pelo caminho aqui estarei, juntamente com a minha família e amigos, para os abraçar e superar.