Sábado. É noite de sardinha assada. Noite grande nas Festas Populares de Samouco. Mais do que isso, é noite de a Charanga da Sociedade Filarmónica Progresso e Labor Samouquense cumprir um ritual que este ano assinala uma década de existência.
A mais perfeita união entre as vertentes “profana” e religiosa das celebrações apresta-se a arrastar centenas e mais centenas para o largo da Praça da República.
Faltam 15 minutos para as 23h00 e as movimentações nas novas instalações da colectividade – conhecida entre os locais como apenas Sociedade – já se fazem notar. Mais de quatro dezenas começam a juntar-se para afinar instrumentos e o reportório com que vão encantar uma multidão, ávida por conquistar um lugar entre as quatro paredes do sagrado templo: a Igreja Matriz de Samouco.
A Homenagem a Nossa Senhora do Carmo, Padroeira das festividades – o Santo Padroeiro da freguesia é São Brás –, protagonizada pela Charanga da Sociedade, representa não só a devoção dos intérpretes como de toda uma população. E alarga fronteiras, porque o ritual até granjeou fama entre visitantes, forasteiros, que já sabem onde podem celebrar a perfeita união, de arte, celebração, evocação e fé ou não fosse este um momento único em Portugal, como faz questão de frisar José Emídio Fontes, fundador e responsável máximo pela Charanga da Sociedade.
“Além de um momento único, passou a ser um dos momentos mais importantes e simbólicos das Festas do Samouco. Não só para a população local. Temos forasteiros que vêm apreciar uma tradição que é única, que não existe em mais nenhum ponto do País”, realça o também trompetista, em entrevista concedida ao DIÁRIO DA REGIÃO, no museu da colectividade, instantes antes de dirigir o ensaio geral.
Charanga nasceu para animar as festas
Lá em baixo, no salão Francisco Domingos Taneco – saudoso maestro da Banda da Sociedade, que chegou a ser o trompete mais consagrado de Portugal – vão soando as primeiras notas, “desgarradas”, que encontram eco no branco das paredes, bordadas a “bordeaux”, da maior sala de espectáculos do Distrito de Setúbal.
Os músicos ocupam as cadeiras, já munidos de “t-shirts” amarelas e lenços vermelhos atados ao pescoço, distribuídos pela Comissão de Festas. As cores de ouro ou prata dos instrumentos reflectem a iluminação da sala, onde se encontra uma mesa improvisada para colocação de material como as pautas musicais ou uma simples garrafa de água.
Antes, José Emídio Fontes recorda como e quando nasceu a Charanga da Sociedade. “Nasceu a partir de um almoço de amigos. Sentimos que nas festas havia um vazio de alegria nas ruas. Por que não, nós, músicos da Banda do Samouco, sairmos para a rua e animarmos toda a gente? Assim foi. Saímos e foi um sucesso no primeiro ano, com centenas de pessoas atrás de nós”, lembra.
No ano seguinte surge, então, aquela que já se tornou imagem de marca dos festejos. “Em 2007, decidimos juntar uma homenagem religiosa à parte de animação nocturna, em Honra de Nossa Senhora do Carmo, tocando e cantando na Igreja. De seguida, saímos para a rua para animar toda a gente”, explica.
“Quem faz a festa somos nós”
Os minutos voam. José Emídio Fontes assume a batuta e ensaia-se o reportório que, daí a cerca de meia-hora, será tocado e entoado, com emoção, na Igreja Matriz. Tempo ainda para uns ajustes nos temas que serão tocados por entre um “mar de foliões” e toca a agrupar, para a saída rumo ao templo sagrado, ao rufar de caixa e tambor.
A informação de que o renovado largo da Praça da República já está completamente à pinha chega, via “walkie-talkie”, por um elemento da Comissão de Festas. Nada que surpreenda o grupo de seniores e jovens que dão corpo à Charanga da Sociedade. Até porque, assim acontece invariavelmente todos os anos.
Para trás, já ficara registada a definição da Charanga da Sociedade, que pode servir como força de inspiração ao grupo. “Quem faz a festa somos nós!”
Abre-se caminho, a Charanga avança, passa pela Praça José Coelho e eis um cenário indescritível. Gente, gente, mais gente, madura, jovem, locais, visitantes, em ansiedade. Abrem-se as portas do solo sagrado. O ritual, composto pela interpretação de três temas, está prestes a arrancar.
A Igreja enche-se num ápice. Lá fora, a multidão aguarda pela saída dos músicos, que ainda voltam a interpretar o tema de Nossa Senhora do Carmo, de frente para a Igreja, até que o céu é iluminado por “fogo preso” em redor da imagem da Padroeira das festividades. Chovem aplausos. E agora, eles preparam-se para descer a escadaria do templo.
O reportório muda de figurino. Arranca com “Despacito” para gáudio de uma onda gigante, que já se prepara para engolir a Charanga num outro tipo de ritual e a festa prolonga-se madrugada dentro.