Embora afastado há dois anos da Cáritas de Setúbal, Eugénio Fonseca continua a acompanhar a situação no distrito. Preocupa-o, sobretudo, o conflito laboral na Autoeuropa, pelo impacto social que poderia ter. O presidente da Cáritas Portuguesa avisa para os perigos da crescente suspeição sobre as IPSS’s e diz que alguma da polémica sobre a ajuda às populações afectadas pelos incêndios foi “eleitoralismo”
Liderou a Cáritas Diocesana de Setúbal durante três décadas, convidado pelo mítico bispo D. Manuel Martins, que o levou a uma mudança espiritual na forma como passou a encarar a pobreza e as desigualdades sociais, contra a resignação.
Formado em Ciências Religiosas pela Universidade Católica e docente na Escola Secundaria do Bocage, sadino de 60 anos, Eugénio Fonseca, preside à Cáritas Portuguesa (nacional), mas está atento à situação económica e social no distrito.
Antevê uma perda irrecuperável de milhares de postos de trabalho na Autoeuropa se patrões e trabalhadores não chegarem a um acordo no curto prazo, com consequências devastadoras, num distrito altamente vulnerável.
Nesta entrevista, Eugénio Fonseca avisa também que se instalou a desconfiança entre os doadores e as pessoas em geral em relação às IPSS, na sequência do escândalo Raríssimas. Defende a Cáritas que foi alvo de suspeições durante os incêndios e denuncia os acusadores de manobras “eleitoralistas” sem provas.
Elogia o actual Governo, critica duramente as opções do executivo de Pedro Passos Coelho por políticas anti-sociais que desrespeitaram a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Dá como exemplo, a criação das Cantinas Sociais que custaram mais ao Estado que o RSI, cortado durante o período da ‘troika’.
Como caracteriza a situação social da cidade e do distrito actualmente?
Continuo a acompanhar a situação da região, apesar de afastado há quase dois anos. Vive-se uma situação de ansiosa expectativa, porque o que se está a passar na Autoeuropa e os impasses entre trabalhadores e administração levam-nos a ter receios. Não quero crer mesmo que esta situação possa levar a uma ruptura que conduza à extinção dos postos de trabalho directos e indirectos desta empresa na região. Não significa que esteja a menosprezar o papel de outras grandes empresas que já conseguiram vencer esse tempo agreste da crise nos anos 80, como as celuloses, os cimentos, os adubos ou indústria naval. Mas a Autoeuropa está numa zona estratégica e é a face da exportação do País que ainda tem um défice muito grande e isto iria diminuir esta fraca capacidade exportadora. O grande numero de postos de trabalho que seriam perdidos e com a consequência de grande parte deles não poderem vir a ser recuperados. Se não se chegar a um acordo, receio que isso possa acontecer. Sei que muitas vezes se atira para cima dos trabalhadores a ameaça do encerramento. Não creio que os responsáveis estejam interessados nisso e que isso seja uma manobra para justificar a trasladação da empresa para outro qualquer lugar do mundo onde a mão de obra seja mais barata.
Acha que a principal responsabilidade tem que ser da Administração?
Acho que tem de ser de ambas as partes e a Autoeuropa tem essa experiência, porque sempre ouvi falar de uma capacidade de diálogo, que está a falhar. Creio que há uma falta de diálogo. Olhando para a região, aquilo que me preocupa de verdade é esta situação, que se tornou uma realidade instável, quando, para nós, era um ex-libris, um novo símbolo da relação entre trabalhadores e empregadores.
Quanto ao resto, a crise recente passou pela região de Setúbal deixando um rasto de desemprego, de longa duração e muito preocupante, de jovens à procura do primeiro emprego e que, se não se alterarem as regras do mercado de trabalho, têm já 25 ou 30 anos e ainda não tiveram uma primeira oportunidade de emprego.
Custa-me muito ouvir alguns peritos em Economia, de forma resignada, aceitarem os fluxos do mercado de trabalho, em que uma ou duas gerações possam vir a não ter emprego! Isto é arrepiante! Os anos passam, os jovens investiram na sua formação e o emprego é uma miragem.
Também acontece na nossa região que os que conseguem emprego, muitas vezes, não conseguem autonomia financeira. Há gente que continua a procurar organizações sociais a pedir ajuda e a recorrer a apoios do Estado. No distrito só não estamos agora como nos anos 80, porque desde então viemos a criar almofadas que têm atenuado as situações mais graves.
Utilizou a palavra “resignação”. O antigo bispo de Setúbal, D. Manuel Martins, era contra a resignação e é conhecido o seu papel contra as injustiças sociais. Que lições tirou dessa experiência?
Nos anos 80 havia uma certa passividade das organizações… parece que faltava uma voz de comando, de alerta, que na altura foi a de Manuel Martins. Foi providencial, a forma como agia, o desassombro, daquilo que dizia, sem receios (e sabemos que não é fácil quando se luta contra a corrente, as consequências que dai advêm). Eu próprio fiz uma transformação interior, muito grande.
Tinha uma concepção da pobreza, da exclusão social, alinhava com aqueles que acham que isto é uma fatalidade, sempre existiu e há-de existir, que os pobres só eram pobres porque queriam, que trabalho não faltava, associava a pouca vontade de trabalhar às situações de pobreza; que a sociedade era mesmo assim, que uns tinham muito e outros tinham pouco; eu estava do lado dos fatalistas e dos resignados.
Mas o entusiasmo de ter sentido o testemunho de Manuel Martins, e a mensagem que ele transmitia, fez-me descobrir e deu-me um ‘click’. Apesar de ter nascido numa classe pobre. Quando percebi isto, mudou a minha forma de ver o mundo. Havia quem dissesse que D. Manuel se tinha adaptado às circunstâncias, porque no sítio onde antes tinha estado não tinha um espírito revolucionário tão notório… eu fiz uma investigação para um livro, e descobri textos mais antigos de D. Manuel em que ele já tinha exigido o regresso de António Ferreira Gomes, exilado por Salazar. D. Manuel não se adaptou às circunstâncias em Setúbal, embora isso não tenha mal nenhum!
É impressionante como é ele sozinho assumiu um combate tão complexo, contra forças que tinham braços complexos muito extensos e fortes! A começar pelo Governo. O bispo tinha esta possibilidade de contactar com as pessoas, ao contrário dos governantes. Ele todos os dias descia à rua, estava com as pessoas, reunia-se com os sindicatos, ia às fábricas onde havia problemas. Aos domingos, no fim das missas, estava com as pessoas. Portanto, ele falava do que via! Não falava de estatísticas ou do politicamente correcto.
Se não tivesse havido esse combate sem tréguas de Manuel Martins em defesa dos mais lesados pela crise, nunca teríamos tido um plano de emergência para Setúbal nem a União Europeia teria revertido a prioridade que era a região, porque sabemos que uma operação integrada não era para o distrito, devido às características ideológicas da mesma. Passou a ser uma prioridade por causa da intervenção do bispo.
Há cinco ano, em plena acção da ‘Troika’, disse que “com a austeridade estamos a criar mais pobreza para o futuro”. Confirma-se essa previsão?
Não se confirmou, porque o Governo teve a lucidez de repor direitos sociais que tinham sido retirados aos mais vulneráveis durante esse período. Sempre questionei, quando me encontrei com a ‘troika’, como era possível haver um memorando assinado com as três entidades que intervieram em Portugal e depois vir a saber-se que os pressupostos do mesmo não eram correctos.
Fez-me muita confusão o facto do governo, na altura, ir muito para além do que a própria ‘troika’ exigia! Nunca entendi porque é que se cortou no Rendimento Social de Inserção ou nas regras do Subsidio de Desemprego, porque muitas vezes as pessoas foram violentadas, ao perderem o emprego!
Estamos agora numa fase interessante. O contributo que o Presidente da Republica tem dado para levantar a força anímica do povo, mas dura o que dura…
Estes bons tempos de agora têm que ver com os sacrifícios que o povo fez! Não gosto que digam que foi mérito do anterior governo. Não! O que conseguiram foi à custa dos sacrifícios na redução salarial em especial na função publica, nos direitos adquiridos, que são aqueles que vêm na Declaração Universal dos Direitos do Homem. Havia possibilidade de os manter. Por exemplo, questiono que as cantinas sociais tivessem custado mais ao Governo que o Rendimento Social de Inserção! Essas cantinas foram destinadas à chamada “pobreza envergonhada” e o RSI devia ter sido mantido, era mais digno…
Mas preocupa-me que este crescimento esteja só assente no turismo. No imobiliário tenho algum medo, porque é uma bolha e, se rebenta, deixa consequências. Não é por acaso que está outra vez a aumentar o sobre endividamento das famílias. O Governo e o Banco de Portugal deviam tomar medidas, porque quem é atingido é quem solicitou o crédito e não quem o concedeu. Há muita iliteracia que agrava o problema.
Continuam a aparecer situações de pobreza geracional que merecem um tratamento mais profundo. Depois há os desempregados de longa duração, há grande número de contratos a termo certo, mas é preciso saber se há facilidade nos despedimentos… há muita precariedade. Pagamos hoje 600 euros a um licenciado.
No caso Raríssimas, pediu um apuramento rigoroso por parte da justiça, mas alertou para generalizações. Vê sinais de que as pessoas em geral e em particular os doadores, os mecenas, se tenham retraído na ajuda às IPSS’s?
É notória, essa desconfiança. Aproveito para prestar homenagem à nova presidente da ‘Raríssimas’ pela coragem de ter aceitado uma missão tão difícil. Essa desconfiança instalou-se e um dia a história vai contar porque é que isto está a acontecer.
A Cáritas já foi alvo desse tipo de insinuações.
O problema não é só haver menos doações, mas o desconforto que se instala nas pessoas que, sem nada de material terem como retorno, sofrem com isto porque depois ninguém cuida do problema da instituição.
Incomodou-me muito que entre Agosto e Outubro chovessem suspeições sobre as instituições de solidariedade envolvidas na ajuda às vítimas dos fogos. Até hoje ainda ninguém veio em que estava sustentada a suspeição. Isso prejudicou muito o trabalho no terreno. A Cáritas tinha cem voluntários em três concelhos todos os dias e as pessoas quase que queriam regressar a casa porque não ficavam bem ao ouvir dizer que a “ajuda não está a chegar às pessoas”.
As pessoas queriam que a ajuda fosse uma casa, mas uma casa não fica pronta do dia para o outro, é preciso limpar e legalizar terrenos, projectos, etc. e as câmaras não tinham capacidade. A partir de Outubro, nada! Até Outubro houve incêndios, e a partir dai nunca mais se falou desse assunto. Acho que não é difícil de perceber que as suspeições tinham a ver com o acontecimento que se daria logo no dia 1 de Outubro…
As eleições autárquicas.
Aconteceu, atingiram-se objectivos e acabaram-se as suspeições! É grave! É uma utilização eleitoralista que não deveria acontecer, pelo respeito que as pessoas nos merecem.
O outro caminho para se restaurar a confiança é haver um maior planeamento neste sector, porque está a ser atingido pelo vírus que contaminou a economia de mercado, chama-se concorrência, competitividade ilegítima. É preciso perceber o percurso de cidadãos que enveredaram por esta via. Será que ficaram desempregados de outros sectores? Deixaram de ter vez e voz nesses sectores?
As IPSS devem funcionar como empresas?
Qualquer instituição da economia social deve ser gerida como uma empresa. No centro da instituição está a pessoa, mas não o lucro e isso faz toda a diferença, mas também não se pode gerir uma empresa do terceiro sector sem lhe dar a sustentabilidade, não numa perspectiva de lucro, eu chamo-lhe excedentes. Não podem esses excedentes ser para os bolsos dos que se apropriam dolosamente deles, são para gerar mais acções dentro da mesma área.
As IPSS precisam de ser mais auditadas?
Isso já acontece. Em primeiro lugar decorre da consciência dos cidadãos. Tem que haver uma participação efectiva, não é pagar quotas! É estar, é criticar, é dar sugestões! Há conselhos ficais e é muito estranho que só ao fim de anos se descubra que havia dinheiro utilizado para coisas que não eram devidas! Não é só uma pessoa que tem que ser responsabilizada, há varias…as assembleias gerais são o local para em transparência as coisas serem bem explicadas. E sempre que há alguma suspeita, o Estado tem os seus serviços de inspecção próprios. Mas muitas vezes esse acompanhamento da Segurança Social é estatístico, como por exemplo saber se estão lá aquelas crianças que fazem parte do “contrato”, ou número de pessoal ao abrigo do acordo assinado, etc., etc. Deveríamos era saber que resultados estamos a obter.
A corrupção está na ordem do dia e estamos a assistir a uma actividade dos órgãos judiciais sem precedentes. Somos de facto um país minado pela corrupção e de que forma?
É um flagelo em Portugal, uma evidência que decorre não só dos processos que têm vindo a público, mas de há muito tempo. De como é que cidadãos subiram de determinado patamar de vida, para outros astronómicos? E que contribuíram para as enormes desigualdades em Portugal.Há uma apropriação indevida da riqueza.
Os processos são tão complexos, que também às vezes impera uma abordagem populista destes casos. A comunicação social deve denuncia-las, mas deve ter algum cuidado.
Esta corrupção está a atingir áreas da governação. Vamos aos militares, às policias, ao sistema financeiro e agora até os tribunais, a alta finança, e os políticos. O meu amigo Guilherme Oliveira Martins costuma dizer que “a corrupção começou com um pequeno favor”. Às vezes instala-se uma paranóia que a gente até tem receio… Olhe que eu passo a vida a fazer pedidos, para aqueles que não estão na fila. Mas estou tranquilo. Costumo dizer que isto não é cunha, é mediação. Há pobre gente que se não tivesse uma ajuda teria uma consulta lá para as calendas!
Espero que a justiça não se deixe infectar por lóbis e critérios ideológicos, que seja madura e isenta.
A Caritas também está empenhada na proteção de pessoas que sofrem de doenças crónicas, como a adição, que é um problema grave de saúde pública. O ultimo relatório do SICAD mostra um agravamento dos problemas do alcoolismo. Que papel têm tido?
Em primeiro lugar preocupa-nos a prevenção, e ir às causas. Infelizmente pela pressão, quase não temos tempo de ir às causas porque isso implica uma intervenção sociopolítica muito mais forte e persistente alem daquela que a Cáritas tem tido, porque há muita pobreza que é gerada pelas chamadas estruturas iníquas. E essas são suportadas por sistemas legais. É aceite com alguma indiferença e socialmente aceite (o alcoolismo) e são cada vez mais as faixas mais novas que mais consomem e as consequências são tão funestas como as restantes drogas e não é por acaso que há um aumento de doenças do fígado, etc. Há solução e passa por uma educação para a a utilização correcta das bebidas.