“As dragagens vão afundar os canais ou a marca Setúbal?”

“As dragagens vão afundar os canais ou a marca Setúbal?”

“As dragagens vão afundar os canais ou a marca Setúbal?”

Académico setubalense arrasa projecto da APSS, que classifica de ignorante, e aponta também o dedo à Câmara de Setúbal, que acusa de cumplicidade

 

 

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Em entrevista a O SETUBALENSE-DIÁRIO DA REGIÃO, Viriato Soromenho Marques, histórico ambientalista, fundador da Quercus, e professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, não poderia ser mais contundente.

Contra as dragagens no Sado, afirma que a Administração dos Portos de Setúbal e Sesimbra (APSS), que está a promover o arrojado projecto de Melhoria das Acessibilidades Maritimas ao Porto de Setúbal é a mesma entidade que “não consegue governar a modesta operação” portuária actual, paralisada pela luta dos estivadores há duas semanas.

 

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O que pensa do projecto de melhoria das acessibilidades marítimas ao Porto de Setúbal?

Parece-me que é um caso típico de ter mais olhos do que barriga. Na altura em que conversamos, o Porto de Setúbal está parado por uma greve, e um dos seus clientes estratégicos, a Autoeuropa, está em risco de parar a produção de viaturas, que já não consegue nem exportar nem armazenar. A realidade constitui sempre o derradeiro argumento. A mesma APSS que não consegue governar a sua modesta operação, hoje, é a mesma entidade que vai remover 6,5 milhões de m3 de areias e gastar 24,5 milhões de euros (14,8 de fundos comunitários) para permitir que os canais da foz do Sado acomodem a entrada de navios porta-contentores de uma dimensão muito considerável. Nos documentos técnicos fala-se da criação de 60 postos de trabalho na primeira fase da obra, mas na imprensa a APSS pagou anúncios de página inteira propalando a fantasia delirante da futura criação de milhares de postos de trabalho.

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Já muito foi dito e escrito sobre os custos ambientais deste projecto, mas aquilo que me choca mais é a profunda ignorância que ele reflecte. O que a APSS está a tentar fazer, com a surpreendente cumplicidade do município de Setúbal, é a reintrodução de um modelo de crescimento económico não sustentável para a cidade e a região de Setúbal. Baseando-se em projecções da evolução do comércio mundial por via marítima, totalmente especulativas, que ignoram, duplamente, o processo de provável contracção da globalização com a vaga de proteccionismo que se está a espalhar pelo mundo, e a capacidade acumulada nos portos nacionais vizinhos para contentores, em Sines, Lisboa, e futuramente no Barreiro, a APSS vai, provavelmente, criar uma oferta redundante, isto é, um elefante branco. Mas imaginemos que a APSS tinha razão, e que até 2040 poderíamos multiplicar o movimento do Porto de Setúbal três ou quatro vezes. Se seria isso positivo para a cidade? A minha resposta é inequívoca: não! O ciclo de sucesso portuário seria breve, como todos os ciclos económicos, mas os danos ambientais seriam duradouros. Setúbal conheceu um forte crescimento, baseado no mesmo modelo de forte impacto ambiental, na década de 60, que começou por matar as ostras no Sado e terminou nos planos de emergência para combater a fome e o desemprego maciço na década de 1980. Será que já nos esquecemos disso?

Mas não lhe parece que, ainda assim, a APSS tem alguma razão quando argumenta que estas obras vão beneficiar a cidade e a região?

Que a APSS insista neste projecto, que já tinha abraçado na década de 1990, não me surpreende. Por tradição, os seus responsáveis são gestores discretos, que ninguém conhece pelo nome, e inimputáveis. A APSS tem o hábito de estar em Setúbal, sem pertencer a Setúbal. Se tivesse preocupações com a vida da cidade de Bocage, estaria neste momento a preparar os investimentos necessários para evitar que dentro de 15 ou 20 anos as marés cheias inundem a Praça de Bocage, devido à inevitável e galopante subida do nível médio do mar, causada pelas alterações climáticas. Em vez disso, as dragagens – que merecem fortes protestos dos empresários turísticos e das organizações de pescadores artesanais, que sustentam centenas de famílias – não contabilizaram os danos resultantes da diminuição da produtividade biológica do estuário, até porque haverá sedimentos contaminados no material dragado, que é uma reserva natural também por isso mesmo e não só pelas aves aquáticas, nem descontaram as perdas de postos de trabalho no sector turístico, resultantes não só do eventual aumento futuro da circulação de navios comerciais no estuário, como das consequências prejudiciais sobre a comunidade de golfinhos do Sado. Acrescento ainda que em Aberdeen, na Escócia, uma comunidade semelhante sofreu impactos negativos, devido a dragagens, mas em Setúbal ninguém quis aprender a lição.

Porque diz que Município de Setúbal é cúmplice da APSS?

Confesso que não compreendo nem tenho explicação para esta posição do município. Ao longo dos últimos anos, a actual presidente da edilidade sadina tem apoiado, e bem, a criação da marca Setúbal como destino turístico baseado em valores ambientais e culturais. O Sado tem a dupla marca da natureza e da história. Setúbal foi acolhida no prestigiado Clube das Mais Belas Baías do Mundo. A cidade investiu na sua reabilitação. Os equipamentos públicos embelezaram-se. Perante as obras da APSS, a Câmara Municipal de Setúbal, paradoxalmente, limitou-se a aplaudir. Sem um protesto nem uma exigência de rigor. Não quero acreditar que os interesses dos mais de cem mil habitantes de Setúbal servem como moeda de troca nas negociações nacionais da “geringonça”. Razão tem o deputado independente eleito pelo círculo de Setúbal, Paulo Trigo Pereira, quando escreveu num artigo recente publicado nas páginas do “Observador”, a 28 de Outubro, que “não é possível ter o sol na eira e a chuva no nabal, como pretende a Câmara de Setúbal”. Na verdade, mesmo que as dragagens não se iniciassem, a verdade é que a marca de uma Setúbal verde, sustentável, protectora da dádiva incalculável do Sado e da Arrábida, já teria sofrido danos. A única coisa que as dragagens já conseguiram afundar é o prestígio de Setúbal como cidade capaz de adoptar um modelo de desenvolvimento sustentável.

 

Inês Antunes Malta

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