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Teclas, toques e tiques

Teclas, toques e tiques

Teclas, toques e tiques

22 Outubro 2017, Domingo
Juvenal Danado

Não falta quem sustente que as inovações tecnológicas (leia-se eletrónico-digitais) são lenha que nos há de queimar, e a breve trecho. O desemprego atingirá tal cifra, vaticina-se, que já se alvitra taxar os robôs, para suprir a míngua de contribuições dos humanos. Não virá longe o dia, também se prediz, em que os androides nos superarão em inteligência, obterão vontade própria e atingirão refinamentos de velhacaria bastantes para nos darem cabo do canastro. Facto é, que já somos manietados pelas teclas das tecnologias ditas novas, perdemo-nos nos toques que lhes damos e manifestamos tiques assombrosos por mor delas.

Antes do uso do computador se generalizar, os professores faziam os testes e as fichas de trabalho manuscritos ou à máquina de escrever, umas figuras coladas, o original entregue na reprografia, para as fotocópias necessárias. Uma ocasião, ainda não me rendera à novidade (porque considerasse que não necessitava dela, ou talvez não me sobrassem escudos para a despesa), estava a entregar os meus originais manuscritos, e uma colega, com trejeitos de modernaça, meteu-se comigo:

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– Ainda fazes os testes à mão?!

Percebi-lhe o desdém na expressão gozada. Significava que, antes, éramos todos espertos e bons professores, ela incluída; mas a partir daquela altura, para ser considerado bom, esperto, atualizado, o professor teria de se render à engenhoca eletrónica.

Há quem se sinta nas nuvens por adquirir todas as novidades digitais e por saber utilizá-las muito bem e por dormir com elas à cabeceira. Vai por aí e por acolá, uma euforia que alimenta egos e vícios de milhões de fanáticos dos novos bezerros sagrados. Certo que a Humanidade deve a sua evolução, os confortos de que usufrui e, porventura, a sua sobrevivência, à descoberta, aperfeiçoamento e uso de tecnologias novas ao longo dos milénios, desde a primeira ferramenta talhada em madeira, pedra ou osso. Mas entre a panóplia de novos inventos há os que melhoram (e como!) a qualidade da nossa vida, e os que não passam de chungaria para alimento de vaidades, consumismos e alienações.

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No afã de inovar e tirar lucro, a sociedade tecnológica parece tudo fazer para se autodestruir. Nunca antes, a vida, a liberdade e o destino dos humanos estiveram tão dependentes das inovações tecnológicas e tão perigosamente ameaçados por elas. Os malefícios para a saúde provenientes das radiações e da utilização desenfreada, a possibilidade da restrição das liberdades essenciais dos cidadãos pelos poderes, o perigo da cessação súbita e por tempo indeterminado de serviços imprescindíveis à nossa sobrevivência (por via de uma tempestade solar mais forte, por exemplo), o potencial destrutivo que o Homem tem hoje ao seu dispor e que vai aperfeiçoando até ao limite do inimaginável, são alguns dos aspetos que convém não esquecer quando falamos de novas tecnologias. Não menos significativo, é vermos como as gerações mais novas estão agarradas às bugigangas eletrónicas, como vivem em função delas e se alienam da normal convivência e da vida real, como têm dificuldade em discernir entre o conhecimento – o saber consolidado, só possível por via do trabalho e do estudo – e os caudais de informação enganosa, apócrifa, perversa a que têm acesso por simples manobras de teclas.

Fomos atingidos pela febre das novidades eletrónico-digitais, sejam elas utilidades que nos facilitam a vida ou quinquilharia sem valor nem préstimo que inunda o mercado a custos de maravilhas. E quem não acompanha ou se recusa a seguir a folia, enfileirado e aprumadinho atrás dos outros, é visto e tido como pré-histórico. Por este andar, chegaremos, não tardará, a um modo de vida estranho aos atuais padrões humanos. Talvez deixemos de cozinhar, de trabalhar, de criar, de conviver, de fazer amor e procriar, porque as novas tecnologias farão tudo por nós e entreterão cada indivíduo até ao delírio, à loucura, em épicas e orgásticas maratonas de teclas, toques e tiques. Longe dos velhos tempos em que nos ocupávamos nas ninharias da agricultura, da pesca e da pecuária, a manufaturar e fabricar, na produção artística, no usufruto cultural, às voltas com fogões, fornos, panelas, tachos e frigideiras, a conversar e a aprender e a divertir-nos uns com os outros, a amarmo-nos e a concebermos naturalmente a descendência, a Humanidade atingirá a sua plenitude. Seremos, então, uns semideuses, uns génios refinadíssimos e umas felicíssimas criaturas. Mesmo que o preço seja a solidão partilhada com as nossas mágicas teclas, os nossos sábios toques e os nossos prodigiosos tiques.

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