“A cidade era para os seus habitantes, naqueles tempos sem televisão, o centro do mundo. (…)
A Arrábida, a serra particular da cidade, oferta geológica de deuses, fadas e gnomos, era a maior cadeia montanhosa do globo, tratando por tu outras serranias, se é que existiam, fossem elas cordilheiras improváveis, estilo Alpes ou Andes ou outra coisa qualquer, porque nesses montes nunca ninguém tinha ouvido falar.”
“A cidade por vezes desertava da tristeza, porra, não há-de ser só tristeza, a vida.
Ia à praia, ia à feira, ia em bandos à Arrábida, tentava ser feliz.”
In As mulheres da Fonte Nova
Não gosto de poetas.
Os poetas são criaturas muito estranhas. Vêem as coisas por dentro ou de lado, num ângulo morto ou vivo, absurdamente evidente, tão evidente que ninguém desconfia da sua evidente existência oculta. Submetem as palavras ao rigor de exames arrojados.
Neste mundo de prédios, casulos e esquadrias, neste mundo de escrituras e compras e vendas, dinheiros e transacções bancárias, os poetas são um estorvo.
São uns bisbilhoteiros, sempre com intrigas a dizer o que ninguém diz e a mostrar a força anónima, desconhecida, do que já é conhecido e ninguém conhece.
Interditam o óbvio.
Gente perigosa.
Alguns estão-se nas tintas para a ciência, outros até com a ciência fazem poesia.
E, daqui, desta cidade que contempla a serra, deve, sem hesitação, ser proclamado o fim da poesia. Riscar o nome de Sebastião da Gama. Para sempre. Celebrar a entrega da Comenda a privados que até a alma privatizam. Há que gostar do arame farpado que os ditos privados, gente boa, instala, estende e dispõe em cada canto da Serra Mãe. Há que aceitar o fecho dos caminhos públicos, por onde andarilhos andarilhavam à solta, em dias felizes; há que fechar os olhos ao desvio do leito das ribeiras; há que fazer vista grossa ao fim de caminhos corta-fogo.
E há, sobretudo, que ignorar, desconhecer, esquecer, que a lei, a tal coisa que é igual para todos, é todos os dias, todos os dias, violada, desprezada e apunhalada. Publicamente. À frente de toda a gente. Com fanfarras e fanfarronices. Com guardas gorilas. Privados.
Destroem-se equipamentos no Parque da Comenda, aquele parque fruído por gerações sucessivas e ininterruptas? Não faz mal. Nenhum.
Poe-se a circulação rodoviária em perigo com a colocação ilegal de pilaretes pelos tais donos daquilo tudo? É melhor não saber. Dessaber.
Se houver um incêndio a serra, a Serra Mãe, pode ficar em perigo pelo fecho dos caminhos corta- fogo? Que mal tem?
O que interessa é que os donos da Arrábida se sintam felizes. A felicidade destes proprietários está na escritura e no registo.
E, como sabemos, escrituras notariais celebradas com sociedades que ninguém conhece e registos prediais feitos a preceito integram um mundo desde sempre interditado a todos os Sebastiões da Gama desta vida, que, aliás só diziam coisas sem sentido: A minha alma sente-se beijada/pela poalha da hora do Sol-pôr;/sente-se a vida das seivas e a alegria/que faz cantar as aves na quebrada;/e a solidão augusta que me fala/pela mata cerrada,/aonde o ar no peito se me cala,/desceu da Serra e concentrou-se em mim.
Na verdade, os poetas não são gente boa. São um perigo. Dizem coisas que doem. Doem muito. Ao olhar-se para a nossa Serra, até por vezes apetece chorar. Pensar que grande parte daquele espaço sagrado, desde sempre tido pela cidade como seu, é hoje alvo de um sequestro em que se interdita a sua fruição, magoa, numa mágoa quase aflita.