Sexagenário utiliza um colchão de esponja para pernoitar nas traseiras da Divisão de Desenvolvimento Social e Promoção da Saúde da Câmara Municipal. As dores acumulam-se, o frio corta, mas diz que não vai desistir
Porquê? A interrogação grafitada na parede das traseiras do edifício da Divisão de Desenvolvimento Social e Promoção da Saúde da Câmara Municipal do Montijo (CMM) paira, desde há cerca de um mês, sobre o colchão de esponja e agasalhos improvisados que Manuel Tavares, 61 anos, tem vindo a utilizar para pernoitar.
Ali dorme, por o actual momento que atravessa na vida não lhe poder proporcionar o conforto do resguardo entre quatro paredes, mas também como forma de protesto.
Está doente, subsiste com um rendimento de cerca de 300 euros mensais – “Mal dá para a alimentação, quanto mais para poder suportar a renda de uma casa”, queixa-se, por entre um olhar lacrimejante, de desespero e indignação por ter visto a candidatura efectuada a uma habitação social ter-lhe sido rejeitada pela autarquia – e, enquanto isso, lembra que vai aguardando por uma intervenção cirúrgica.
Sofre de uma hérnia discal, que o impossibilita de se fazer ao mar para pescar, para poder ganhar o sustento, e não sabe quando nem como irá poder recuperar.
Já tive de adiar a intervenção cirúrgica por não ter local para efectuar a convalescença
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“Estou de baixa há três anos e já tive de adiar a intervenção cirúrgica, por não ter local com as condições mínimas para efectuar a convalescença”, lamenta, depois de lembrar que teve de abandonar a casa que habitava, há um mês, por não ter forma de custear o arrendamento.
O DIÁRIO DA REGIÃO encontrou-o na segunda-feira, 12, pelo raiar do dia, a aprumar o colchão de esponja, por debaixo do alpendre das traseiras dos serviços autárquicos, na Travessa Rosendo Avelino Rodrigues.
É aí que vai passando as noites, revezando-se, de quando em vez, no banco de um antigo Opel Corsa que lhe pertence – mas que, face ao problema de saúde que o afecta, pouco conforto lhe transmite – ou ainda no interior de um pequeno barco pesqueiro, que desde há muito possui, onde as baixas temperaturas, por força da “brisa do mar”, ainda se fazem sentir com maior intensidade.
Interroga-se: “Porquê?”, sem que tivesse ainda reparado na ironia da inscrição que por cima de si habita, pouco acima dos degraus de acesso à porta dos serviços municipais, onde o frio corta pela madrugada e o cinzentismo da estreita ruela quase apaga o Sol. “Medo? Não tenho…”, confessa. As dores e o desespero, afinal, acabam por impedir que sinta qualquer temor pela exposição e falta de segurança.
Vou iniciar uma greve de fome junto à Câmara
Só pensa numa solução por parte da autarquia, porém mostra-se descrente, já que “desde 2014” que tem vindo a pedir habitação social, sem obter o resultado pretendido. Mostra-se indignado – “Que País é este que abriga refugiados e deixa os seus desamparados?, questiona –, ao mesmo tempo que diz não lhe restar outra alternativa: “Vou iniciar uma greve de fome em frente ao edifício da Câmara Municipal.”
Autarquia diz que falta cumprir critério de tempo de residência
Entre outros critérios, está definido que o candidato a habitação social tem de “residir, comprovadamente, na área do município do Montijo, há pelo menos dois anos, de forma ininterrupta”, explica a vereadora responsável pelo pelouro da Acção Social, Maria Clara Silva.
Manuel Tavares afirma que preenche este requisito; a autarquia diz que não.
“O Sr. Manuel Tavares foi atendido diversas vezes pela Divisão de Desenvolvimento Social e Promoção da Saúde da CMM, desde 2014, informando que residia numa embarcação, no Samouco, concelho de Alcochete… apresentou o referido documento que vem atestar que tem residência no Montijo, desde 13/08/2015, pelo que não cumpre uma das principais condições de acesso ao concurso de atribuição de habitações da CMM, pelo que foi excluído”, justifica a autarca.
É possível encontrar evidências que conduziram à exclusão do candidato… podem ser consideradas ‘falsas declarações’
Além disso, acrescenta que no processo “é possível encontrar evidências que conduziram à exclusão do candidato, quer pelo tempo de residência, quer pelo facto de ter declarado indevidamente, no boletim de candidatura, residir no concelho há mais de 2 anos, podendo este facto ser considerado ‘falsas declarações’”.
Quanto à situação de saúde de Manuel Tavares, a autarca salienta que “em contactos estabelecidos com a Divisão Social da Câmara de Alcochete a 16/5/2014, pela Divisão de Desenvolvimento Social da CMM, a Segurança Social tem conhecimento da situação”. E que foi proposto a Manuel Tavares “arranjar um quarto para convalescença, alimentação na cantina social ou no centro caritativo do Samouco”. Todas estas propostas, frisa Maria Clara Silva, “foram recusadas” por Manuel Tavares.
Acresce ainda o facto de a situação de saúde só poder ser considerada, no âmbito de qualquer concurso para a atribuição de fogos de habitação social, “se a mesma conferir um grau de incapacidade igual ou superior a 60%, devidamente atestado pela Autoridade de Saúde Pública Local”, conclui a vereadora.
A Câmara Municipal de Montijo vai entregar, no próximo dia 22, 16 fogos sociais, dos 26 atribuídos por concurso, aberto em 13 de Abril último, os quais “foram sujeitos a grandes obras de intervenção”. Mas nenhum deles irá albergar Manuel Tavares. Os restantes, que ainda estão a ser intervencionados, serão entregues no início do ano de 2017. Enquanto isso, Manuel Tavares estará em greve de fome.