Afonso Ventura: o humor a rir-se da vida

Afonso Ventura: o humor a rir-se da vida

Afonso Ventura: o humor a rir-se da vida

, Professor
4 Maio 2022, Quarta-feira
João Reis Ribeiro

Um amigo pediu, um dia, ao setubalense Afonso Ventura (1887-1967) uma “história humorística com muito optimismo, de modo a fazer-nos esquecer, com alguns sorrisos, as vicissitudes e maus bocados que todos mais ou menos temos que enfrentar pela vida fora.” O resultado foi a narrativa “A dama do mascarim verde”, apresentada como “novela humorística”, publicada no semanário “O Distrito de Setúbal” entre 23 de Agosto e 22 de Novembro de 1966 e, depois, editada em separata do mesmo jornal “para ajuda do sustento” do autor, como recordou a notícia sobre o óbito de Afonso Ventura em 12 de Dezembro de 1967.

Na introdução, o autor justifica-se: “chorar não faz falta a ninguém, excepto a certo número de mamões que usam o sistema de quem não chora não mama. Rir sim, faz falta a toda a gente, porque o riso é salutar, é terapêutica desopilante.” Mais adiante, explica a estratégia – depois de “rebusca nas recordações”, encontrou “episódio assaz pitoresco”, acrescentando não ser história original, mas “um decalque, uma adaptação ao meio ambiente alfacinha de um tema criado por inigualável humorismo gaulês” a que juntou “mais uns gramas de sal, uma pitada de pimenta e um pouco de piri-piri da velha graça portuguesa, de molde a cozinhar um pitéu não muito picante” agradável aos leitores.

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Assim se chega ao lisboeta Bairro Azul para um “episódio trágico-burlesco” no dia do casamento de Júlia Fialho com João Pires. A quase-tragédia que se abateu sobre o noivo aconteceu por ele ter querido levar o sogro a mudar a sua atitude relativamente à dependência e obediência que este nutria pela esposa, Efigénia de seu nome. Mas a experiência dela (ou a sua matreirice) puseram-na como condutora dos acontecimentos que quase acabaram com o Pires, numa história com contornos de plausibilidade, assente em pormenores que comprometiam o passado juvenil do noivo. No final (depois de alguns dias decorridos sobre a boda, com o noivo desaparecido), tudo acaba bem – e Efigénia conta ao Pires a sua intenção: assustá-lo para que não se intrometesse na organização da sua casa. “Brincadeira de mau gosto. Olhe que eu estive em risco de ficar com os miolos de pernas para o ar!”, reconheceu o genro.

 

 

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A novela tem uma estrutura simples, com poucas personagens, em torno de uma trama que tira partido do “carnaval da vida”, com os tais sorrisos prometidos a ganharem força sobretudo nos jogos semânticos e no tom hiperbólico – Efigénia embirra com a careca do marido “porque é muito ciumenta e tem ouvido dizer que é dos carecas que elas gostam mais”, mas “este ‘elas’ tem para ambos um significado muito vago e contraditório: ela diz que são as mulheres, ele diz que são as moscas”; o noivo Pires, quando viu Júlia pela primeira vez, “sentiu que o coração lhe dava mais pinotes no peito do que um poldro no picadeiro”; ao aconselhar o sogro a não se deixar subjugar pela mulher, Pires ouve: “Sempre lhe digo que é preciso ter muito cuidado com ela, lembre-se que você é Pires e ela é capaz de lhe fazer uma racha que não há deita-gatos que o conserte”; quando o noivo andou desaparecido por três dias, comenta o narrador que “não houve maneira de encontrar em Lisboa um Pires desirmanado… todos os pires tinham chávena”; ao terceiro dia depois da boda, sem notícias do noivo, Efigénia pergunta à filha se já tinham trazido o pão, respondendo a noiva “Não sei, mamã… há três dias que sou casada e ainda não vi o padeiro.”

São estas tiradas discursivas, a lembrarem a resposta rápida e desarmante do teatro de revista, que dão peso ao tom humorístico, marca do gosto que Ventura tinha por essa modalidade, área que serviu como actor e como autor.

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