Em 20 de Junho inicia-se a evocação do centenário de nascimento de Matilde Rosa Araújo (Lisboa, 20.06.1921-6.07.2010), uma das vozes mais singulares da nossa literatura do século XX. Lisboeta, tinha raízes em Viana do Castelo, onde ia sempre passar uns dias de férias, cruzando-se então com pessoas que tocavam o seu sentido poético, que ao longo do tempo transformou em personagens dos seus textos narrativos e poéticos, sobretudo crianças e idosos, como Joaquim, o menino que vendia moinhos de vento na praia, ou as mulheres que, sentadas ao sol, olhavam ora o chão ora o infinito, transportando nesse olhar toda uma vida em que o sofrimento era mais sentido do que a alegria, mas onde a escritora conseguia descortinar um fio de esperança.
Tendo feito os estudos primários e secundários em casa, com professores particulares, “longe do mundo de outras crianças”, só quando frequentou a Faculdade de Letras de Lisboa, entre 1941 e 1945, descobriu o sentido de convivência e partilha com alguém da mesma idade. Como isso a fascinou! Falava sempre com uma vivacidade de fazer brilhar sorrisos dos encontros que a Universidade lhe proporcionou.
O convívio com raparigas e rapazes com os mesmos interesses que os seus fê-la aprofundar diálogos e amizades que definiram em boa parte o seu percurso.
De entre esses amigos podemos lembrar alguns dos que o foram para a vida toda: Maria de Lurdes Belchior, David Mourão-Ferreira, Sebastião da Gama, de quem organizou e prefaciou O Segredo é Amar, cuja edição inicial é de 1969, obra apresentada em Setúbal pelo livreiro Joaquim Santos e Silva, da Nun’ Álvares, então a única livraria na cidade.
A abertura e disponibilidade de Matilde em relação aos outros levou-a a colaborar em projetos tão diversos como Árvore, Folhas de Poesia, Távola Redonda, Graal, publicações editadas sob a batuta de alguns desses compagnons de route; em Desenho e Poesia, álbum onde pinturas e poemas vivem em folhas soltas dentro de uma capa; em Bloco: Teatro, Poesia, Conto, publicação coletiva coordenada por Luís Pacheco e Jaime Salazar Sampaio; ou, mais recentemente, Lisbonne n’existe pas, emparelhando os seus textos com os de Al Berto, Lídia Jorge, Maria Isabel Barreno e Nuno Júdice, entre outros.
Escreveu prefácios, colaborou em antologias, participou em conferências e colóquios, por cá e lá fora, recebeu prémios e condecorações, foi editada noutros países, mas o que mais apreciava era ver o sorriso dos seus leitores, nomeadamente das crianças, que sempre ocuparam em primazia a sua criatividade e a sua atenção enquanto docente em escolas comerciais, como a do Barreiro, onde é recordada com carinho.
O Livro da Tila (1957), O Cantar da Tila (1967), O Palhaço Verde (1960), O Sol e o Menino dos Pés Frios (1972), Joana Ana (1981), são apenas alguns dos títulos assinados por Matilde e legíveis por crianças, mas de que todos gostamos, em paralelo com A Estrada sem Nome (1947), Praia Nova (1962), Voz Nua (1982).
Da sua experiência como docente de literatura para a infância ficamos a dever-lhe três antologias importantíssimas sobre a criança, a infância, a literatura de receção infantil: As Crianças todas as Crianças (1979), A Infância Lembrada (1986), A Estrada Fascinante (1988).
Entre 1984 e 2006 foram muitas as vindas de Matilde a Setúbal, nomeadamente à Culsete e a espaços onde a livraria desenvolveu ações de mediação de leitura. Conversou, apresentou livros, seus e de outros, como Mãe d’Alma, de Resendes Ventura, participou em homenagens a diversas personalidades das letras, como Sebastião da Gama ou Urbano Tavares Rodrigues, escreveu dedicatórias plenas de ternura, partilhou connosco muitos textos, carregados de mensagens de esperança, mas em que o olhar da escritora não se nega à melancolia nem à tristeza provocada pelas durezas da vida. Ou a um humor muito peculiar.
É lendo-a que queremos comemorar o seu centenário. Aqui fica uma primeira sugestão de leitura, das muitas que desejamos partilhar.
Fátima Ribeiro de Medeiros / Investigadora do IELT, NOVA-FCSH