Adaptei um verso de uma canção de Sérgio Godinho, “A Liberdade Está a Passar por Aqui” (Maré Alta, 1972), para dar título a esta reflexão sobre os meus dias 25 de Abril e primeiro de Maio de 1974. Isto porque há 47 anos, fui protagonista de alguns dos momentos que ficaram na história da nossa democracia.
Com 21 anos, à época, e a viver em Lisboa, cedo acordei com os sons das transmissões via onda curta das movimentações dos militares naquela madrugada do dia 25 de Abril de 1974.
Eram os ventos da liberdade que sopravam, particularmente, no meio estudantil e operário à volta de Lisboa e outros grandes centros urbanos do país.
E logo, me pus em movimento para o ponto mais nevrálgico das operações, o largo do Carmo. Aí, uma multidão sustinha a emoção sentida pelo ultimato repetido por Salgueiro Maia à rendição do presidente do Conselho de Ministros, Marcelo Caetano.
E aquando da passagem da “Bula”, a chaimite redentora, um grito de liberdade colectivo fez-se ouvir naquela praça, qual rua da Betesga, pequena demais para todo um país que nesse grito se reconhecia.
Estava em marcha este movimento que se verificou ser irreversível no caminho da liberdade e da democracia no nosso país e o protagonista passivo aqui faz de narrador.
O segundo momento, agora já como protagonista activo, aconteceu no primeiro de Maio, desse mesmo ano de 1974, na então vila do Montijo.
Existem fotografias a documentar o evento. Uma figura alta, de óculos, cabelo e barba compridos, retrata a minha pessoa. Do que me recordo, aqui lhes deixo este testemunho: éramos jovens, maioritariamente sócios e dirigentes do Ateneu Popular do Montijo; alguns miúdos do Orfanato do Montijo, juntamente com a sua directora, também se associaram à manifestação.
Era uma manifestação apartidária, e para além de serem contrários ao anterior governo de ditadura, não se conhecia qualquer filiação partidária aos seus componentes; ao longo do percurso, os passeios enchiam-se de gente surpreendida com esta primeira manifestação em liberdade na sua terra e ainda muito expectantes quanto às consequências da mesma. Recorde-se que, à época, não era ainda certa a consolidação de um governo democrático no nosso país e tudo, ainda, seria possível, mesmo o regresso ao antigo regime. Daí, certamente, a pouca adesão da comunidade mais adulta.
O único incidente a referir, assisti-o bem perto de mim e não me senti muito confortável: passou-se com a minha antiga professora e directora do colégio que tinha frequentado, o Externato do Sagrado Coração de Jesus.
Inadvertidamente, cruzou-se com a frente da manifestação e de pronto uma bandeira vermelha rodopiou à sua frente em atitude de hostilidade, num único e brevíssimo confronto entre uma figura do antigo regime e alguém que fora perseguido pelo mesmo, o senhor Pisco (pai).
Nem todos se aperceberam deste incidente que o dia era de tolerância e a Liberdade estava a passar por aqui.