É fácil, justo e genuíno, que todos e cada um de nós perante o abuso de qualquer poder público, se indigne e revolte. E digo público, porque esse nos diz diretamente respeito, já que para ele, no nosso recibo de ordenado ou declaração de impostos, uma infeliz e penosa percentagem nos é tirada. Por isso mesmo, á justificação, responsabilização e penalização do acto, nos sentimos no direito. Mas, …como nasce entre nós esse abuso e o que, em consciência, nos permite levantar contra ele a voz…? Responde-nos empírico, o dito popular: “quem tem telhados de vidro, não atira pedras aos dos vizinhos”, daí, que antes de nos indignarmos, pensemos que tipo de telha temos sobre nós e nossa postura social.
De igual modo que nenhum ladrão começa a sua “carreira”, assaltando o museu do Louvre em Paris, saindo com a Mona Lisa debaixo do braço, …não. Talvez, um frasco de champô, um telemóvel, o Mercedes do vizinho e por aí vai, dependendo do “talento”, capacidade e ambição. O abuso de poder, berço da corrupção social e política, tampouco nasce grande em milhões. Muito embora não o consigamos por vezes entender, é na consciência cívica, ou falta dela e desde há quarenta anos, também democrática, que nasce aquilo que mais tarde se transforma em desonestidade, envelope fechado, privilégio pago, favorecimento. E que quando ainda nos parece inofensivo, vemos até com bons olhos se a nosso favor se manifesta. E é tanta a nossa parcialidade e capacidade de conversão favorável, que de argumentos, por vezes até assentes na cultura e tradição, nos sustentamos.
Que a “cunha”, só cai mal ao que a não consegue, isso a gente sabe. Para o beneficiado, não passa de um gesto amigo, …um favor. O simples piscar o olho na fila de atendimento, para dar a volta e entrar por trás. A consulta que a colega de escola, a trabalhar agora no centro medico desenrascou, quando já não havia vagas ou o requerimento lá na câmara, que leva trinta dias a conseguir, … para os outros. Resolvido em três, pois afinal, para que servem os amigos…? Os nossos, claro! Até porque todos sabemos que, “hoje tu, amanhã eu,” e, “uma mão lava a outra e as duas lavam o rosto,” porque, “somos uns para os outros”. E entre os preferidos, “quem parte e reparte, e não fica …”, e etc.
E assim, claro está, pensaram aqueles que ao repartirem as vacinas, consigo e com os seus compinchas contaram primeiro. Havendo talvez, ou de certeza quem pense, que podendo o mesmo faria; e que poder algum nunca os ascenda, já que, no seu pequeno mundo assim veem as coisas a que chamam democráticas; pois simples e inofensivas. Mas que alimentadas de esta forma de pensar, crescendo o poder de decisão, se revelarão em contratos, “diretos e a jeito”, favores pagos, testas de ferro, contas em paraísos fiscais, fortunas com o nosso dinheiro. Por outro lado, é certo e seguro que o mesmo sistema, o do, “jeitinho”, que hoje nos privilegia, vai-nos prejudicar pela vida fora. Nascendo nas vezes que vimos quem chegou depois, sair primeiro, manifestou-se, sempre que fazendo de nós o nosso curriculum, o mais bem preparado para a função, o mesmo não fez de nós amigo, primo ou cunhado, de quem tinha o poder de o selecionar. Sempre que a urgência da nossa cirurgia, não teve amigos na seleção da lista de espera, o subsídio pedido não teve quem o empurrasse, e tudo ficou complicado, demorado, caro e burocrático, no atropelar do sistema pelo “jeitinho”, feito pelos amigos dos outros.
Se a Democracia nos permite erguer a voz e nela, gritar igualdade, só a consciência honesta da mesma, nos deixa faze-lo, olhando os outros de frente.