Anda desgostoso e revoltado. Roubaram-lhe a mota no resguardo onde a guardava. Não se conforma e questiona-se: como é que foi possível, numa zona habitacional com gente a morar por cima, alguém ter entrado na garagem fechada e sair de lá com o produto do roubo, sem que ninguém desse conta? Como poderia conformar-se? Ao custo da perda acresce o valor sentimental do objeto e ainda a raiva perante a injustiça, a humilhação, a violência de que foi vítima.
Trabalha desde muito jovem, é um cidadão íntegro, respeitador do próximo e da lei, cumpridor das suas obrigações, dá ao país o que tem de dar. A mota saiu-lhe do corpo, dos muitos dias e horas a mais que trabalhou, de semanas a fio sem um dia de descanso, de tantos sacrifícios, de tantas poupanças. Agora roubaram-na, apresentou queixa, e ouviu palavras despidas de esperança: «Sabe, acontece todos os dias, são quadrilhas, desmancham as motas, vendem as peças…». Por momentos, ficou atónito, as reticências a martelarem-lhe os ouvidos e o juízo, e um estranho sentimento de que não deveria ter ido ali, como se não tivesse razões pra se queixar.
Disseram-lhe que o caso ia para investigação. Passaram semanas, e nada. Já percebeu o desfecho. Sente-se injustiçado e enraivecido, e passa-lhe pela cabeça a fúria de vingar o desgosto e o prejuízo: «Se o apanhasse…». Mas é melhor que se resigne, que a justiça é para a Justiça, e pode ser que num futuro de incertezas e de mais sacrifícios volte a poupar o suficiente para outra mota.
A democracia é o regime político mais desejado e benquisto pelos povos. Mas padece de imperfeições e de manias. Uma das manias mais estrambóticas é o mimo com que trata os fora da lei, costume que faz fé na crença lorpa na reabilitação de todo e qualquer bandalho. E vá de paninhos quentes com os gabirus alérgicos ao trabalho e viciados nos ganhos fáceis, os valentões que vivem da cobardia de roubar os bens de cada um, que não contribuem, que dão nadas ao país, e que parecem ter vindo ao mundo exclusivamente para os direitos. A fauna da gatunagem, atrasada para os assuntos da consciência, da generosidade, da solidariedade, da compaixão e da moral, mas chico-esperta nas matérias da pulhice, conhece de cor e salteado as limitações e as falhas da investigação, as deficiências das leis e as branduras da justiça. Resultado: medra como erva daninha em chão propício e usa e abusa da sua perversidade e do seu desprezo pelos outros – tendo direito a respeitos e a advogados, pois então. E o cidadão pacato, honrado e cumpridor que lhes ature e sofra as patifarias, resignado. Bonito serviço!