Caro leitor, os resultados do candidato Ventura em Palmela foram preocupantes: 3336 votos (13,44%) em 25.267 votantes (45,53%) e em 55.490 inscritos. Porque o seu lema político é o ódio contra os ciganos, negros, beneficiários do RSI e pessoas com opções sexuais diferentes. Porque a sua solução para os problemas é rasgar a Constituição, criar um regime presidencialista, talvez tornar-se Presidente-Rei vitalício. O que se passou em Palmela repetiu-se pelo país, o que intranquiliza quem quer viver em Democracia (em especial, se tem memória da Ditadura).
Algumas causas do sucesso do extremismo populista:
1.ª ̶̶ Sensação de ameaça à identidade cultural. O exemplo é a Póvoa de S. Miguel (Moura). Ventura visitou a aldeia na campanha e fez dos ciganos o alvo, mas há outros casos no Alentejo e no país. Num bom trabalho jornalístico recente, foi ouvido o Presidente da Junta de Freguesia e várias pessoas de diferentes idades, profissões, sexos e origens étnicas sobre as razões do voto no Chega nas legislativas (15,43%) e nas presidenciais (Ventura 41,23%; Marcelo, 30,70 %; Ana Gomes, 20,62%). Todos referiram a integração social dos ciganos desta aldeia: no trabalho agrícola sazonal e na venda em feiras e mercados (não vivem do RSI: aliás, no país só dele vivem 6% de ciganos); no convívio social (não há conflitos); na habitação, vivem em casas que compraram, algumas no centro da aldeia (não em bairros sociais ou barracas). Mas há duas razões de incómodo: têm costumes muito diferentes; são 20% da população e reproduzem-se mais do que os outros: na escola primária há 50 alunos ciganos e só sete não ciganos. Mas a escola é que é o meio para a integração e mudança de comportamentos, não é a exclusão social nem o cassetete da polícia como Ventura defende! Semelhante à Póvoa de S. Miguel é o que se passou nos EUA e que levou ao sucesso do Trump: os americanos brancos sentem-se uma minoria no país que os antepassados anglo-saxões fundaram, pois os latinos, chineses e negros já são a maioria. Mas o sucesso dos EUA deveu-se aos emigrantes idos de todo o mundo;
2.ª ̶̶ Pobreza endémica. Vivemos no país da comentarite e da opinionite agudas, mas discute-se pouco o aumento da produção de riqueza e a sua mais justa distribuição, e quando se discute, é na lógica tribal, de grupo, a partir de pressupostos ideológicos. E a pobreza atinge mais as pessoas do interior, mais velhas, menos escolarizadas e informadas, portanto, mais indefesas ao populismo;
3.ª ̶̶ Abandono do interior do país pelos Governos. Iniciou-se com a vaga de emigração em massa para a Europa nos anos 60 e até hoje tem sido pouco combatido;
4.ª ̶̶ Abandono dos munícipes pelos poderes locais. Nos órgãos autárquicos, em vez de se discutir os problemas locais do dia-a-dia dos munícipes, discute-se, demais, temas nacionais, marcados pela luta ideológica para culpar os Governos, alijar responsabilidades e distrair os munícipes. Dou dois exemplos de Palmela (mas há semelhante a isto por todo o país):
1 ̶̶ Todos os anos há acesas discussões sobre o 25 de Abril e o 25 de Novembro. Hoje sabe-se bem o que foram e o que cada partido pensa, para quê repeti-lo há 47 anos e agredirem-se verbalmente uns aos outros;
2 ̶̶ Discute-se a falta de investimento dos Governos nos transportes e nas estradas essenciais. Mas não se discute isto:
- a) ̶̶ O absurdo entrave à conclusão da Estação Ferroviária do Pinhal Novo feito pela Câmara de Palmela e Junta de Freguesia do Pinhal Novo, entre 2002 e 2004, que nos impede, há dezassete anos, de ter cinco comboios por hora em vez de três entre Setúbal e o Pinhal Novo (para os milhares de pessoas que vão a Lisboa, trabalhar, por motivos de saúde ou outras razões);
- b) ̶̶ A falta dos 250 metros finais da avenida J. Lino dos Reis (Aires) há vinte anos, que impede os autocarros de servir cinco mil munícipes de Aires, Bairro Padre Nabeto e Cabeço Velhinho (obra prevista para 2018, por 380 mil euros);
- c) ̶̶ A violação do D. L. n.º 163/2006 por falta de duas rampas no passeio da estrada de Aires à estação do comboio, que obriga uma pessoa em cadeira de rodas a circular 300 metros na faixa de rodagem. E continua, apesar dos meus alertas n’«O Setubalense» e no «Jornal do Concelho de Palmela». São casos como estes, espalhados pelo país, que afectam o dia-a-dia de milhares de munícipes, que os revolta e leva à abstenção ou ao voto nos Venturas;
5.ª ̶̶ Forma pouco inteligente como Ventura tem sido tratado. Na campanha eleitoral, duas candidatas da Esquerda insultaram-no como ele costuma fazer aos adversários; a Direita democrática legitimou-o politicamente desde as eleições nos Açores; a Comunicação Social tem-lhe dado palco desmesuradamente;
6.ª ̶̶ Saudosismo de algumas elites pelo autoritarismo. Na Foz do Douro (Porto), na Estrela (Lisboa) em Cascais e Estoril, Marcelo perdeu cerca de 10% dos votos em relação a 2016 e Ventura teve cerca de 10% mais do que o Chega em 2019. Algumas elites abandonaram o seu candidato natural, o ultraliberal (na economia) Mayan, e votaram em Ventura.
7.ª ̶̶ Perda de memória da Ditadura. Pela ordem natural da vida, há cada vez menos pessoas com memória do Salazarismo, o que desvaloriza a conquista e a defesa da Democracia.
8.ª ̶̶ Vaga de extremismo populista. Vários movimentos organizados ou inorgânicos no mundo põem em causa a Democracia, a ciência, as vacinas, as alterações climáticas, e defendem o terraplanismo (teoria que diz que a Terra é plana, sem indicar onde termina e se cai no abismo) e o Criacionismo (crença religiosa de que o Universo, a Humanidade e a vida são criação de um agente sobrenatural, contestando a teoria científica da evolução das espécies de Darwin). É deste caldo de cultura que o extremismo vive.
9.ª ̶ Redes sociais. Têm um papel muito negativo na difusão da mentira sem freio e são os principais veículos da propagação do extremismo populista.
Cada uma destas causas, a seu modo, contribui para criar os Venturas.