Os Estaleiros Navais do Sado pertenciam à sociedade Eugénio & Severino, proprietária de outra grande oficina, em Pedrouços. Era, talvez, a maior das oficinas de Setúbal. Tinha duas secções: a mecânica (mecânica naval, máquinas-ferramentas, serralharia mecânica e de bancada), do lado da Praia da Saúde; e a caldeiraria (metalomecânica geral), virada ao parque de campismo, hoje PUA. O senhor Soares era o chefe. Mas era o senhor António Ferreira Dias, fresador e subchefe, a alma da oficina, e quem, verdadeiramente, fazia andar aquilo tudo.
Após sair da fábrica SOL, estive um mês na Cometna (Estação de Palmela) a trabalhar como aprendiz de torneiro. Mas tão estranho senti o ambiente, que decidi procurar trabalho noutro local. Tinha o Curso Industrial de Formação de Serralheiro, alguma experiência e muita vontade de trabalhar e de aprender. Era janeiro de 1967. Fui até aos Estaleiros e admitiram-me. Aprendiz de serralheiro mecânico, e a promessa de passar ao torno numa vaga que nunca me calhou (as cunhas, essas velhacas…); quarenta e quatro escudos diários (em abril passei a pré-oficial e a ganhar cinquenta e dois escudos); 6, 12, 16 ou 18 dias de férias, quando atingisse mais de 1, 3, 10 ou 15 anos de serviço, respetivamente. E voltei à liberdade de poder falar enquanto trabalhava e de ir à retrete sem pedir, num ambiente mais aberto e favorável ao trabalho e à construção de amizades. Qual Cometna qual carapuça!
Fiquei, portanto, na mecânica. As bancadas ao centro. O Ti Alves era o oficial serralheiro mecânico. Eu e o Calhotas, os aprendizes-ajudantes. Até à tropa, aquele seria o meu local de trabalho, com surtidas à caldeiraria, para forjar os ferros do limador e para as têmperas de peças; fazia o trabalho de um oficial, mas não passei de pré-oficial (o cume da carreira dos mancebos, na legislação da época) e dos 66 escudos diários – um oficial ganhava o dobro. Numa ala, ficavam os tornos pequenos (onde trabalharam o Zé Aníbal, o Jaime Necas, o Sebastião dos Santos, o senhor Armindo, o Luís) e a fresadora (o senhor Ferreira Dias, o oficial, e Zé Lino, o aprendiz-ajudante).
Na outra ala, o torno grande (a máquina do senhor Aníbal, depois do Zé Aníbal e do senhor Armindo), o esmeril, o limador (as horas que eu lá trabalhei!), o serrote mecânico, o engenho de furar normal e o engenho radial. No topo do lado da Restinguinha, e pegado com o vestiário, ficava o escritório, onde trabalhavam o senhor Viegas e a Eduarda (uma princesa de olhos azuis como dois céus e cara de anjo, e um alvoroço para a rapaziada babada). No topo virado ao mar, o espaço do Ti Hilário, do Ti Henrique Caldeiradas, do senhor Gilberto e do Luís Ferro Velho, oficiais e talentosos mecânicos, do João da Guelha, dos dois Ruis (o do Bairro Santos e o das Fontainhas), os aprendizes efetivos, e do Zé Borralho, que alternava a aprendizagem entre os tornos e os motores marítimos. O Ti Hilário era uma das personalidades da casa. Quando foi contratado, manteve a sua oficina, para os biscatos, no nº 2 da Rua João de Deus, à Lota.
Nunca o vi de outra maneira que não fosse na fatiota de ganga e de boina à espanhola. Era um mecânico sabedor de todos os segredos do ofício, metódico, perfecionista, às vezes algo severo com os ajudantes. Revelava uma grande simpatia, se não amor, pela Espanha, como todos os naturais de Vila Real de Santo António que conheci. As expressões em castelhano saíam-lhe da boca a toda a hora e levava os dias a trautear canções espanholas, em especial «Paloma blanca». Uma altura fui ajudá-lo na reparação do motor de um barco da ostra, na Mourisca. Andámos por lá mais de uma semana. Foi então que lhe conheci a parte do camarada de trabalho, do mestre que tinha prazer em ensinar e que sabia ser amigo dos mais novos.