Num texto memorável sobre José Afonso: O Homem e a Obra (in Movimento Cultural, n.º 4, revista editada pela Associação dos Municípios do Distrito de Setúbal, em Fevereiro de 1988), José Jorge Letria, que agora preside à direcção da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), diz-nos que “nunca Zeca deixou de associar o rigor estético à exigência ética, daí resultando a força e a perenidade do seu exemplo (…), de uma vida e de uma obra que são património nacional e universal.” Igualmente elucidativo é o que recorda o seu próprio irmão, João Afonso dos Santos, no seu livro biográfico José Afonso: Um Olhar Fraterno (ed. Caminho, 2002): “(…) a política como acção cívica; e também ética, acrescento, porque as duas vertentes eram para ele inseparáveis”.
A este propósito, é digno de nota o “ritual” celebrado, todos os anos, na cidade do Sado! Na merecida e singela evocação da data do falecimento de José Afonso (Aveiro, 2.8.1929-Setúbal, 23.2.1987), o genial poeta, cantor e compositor é saudosamente recordado por alguns dos numerosos admiradores (e, em particular, pelo seu fraternal amigo Leonel Coelho, histórico resistente antifascista, respeitado militante comunista e dinâmico dirigente da Academia Musical de Alhos Vedros, concelho da Moita, entidade organizadora da tradicional romagem), que, recentemente, de forma emocionada, foram visitá-lo na simples campa onde repousa, no cemitério de N. Senhora da Piedade.
Na altura em que acabamos de comemorar, do modo menos “efémero” possível, mais uma efeméride da partida do admirável cantautor, há um aspecto particularmente curioso e crucial da sua biografia que não deve passar em claro: a edição, em 1969, do excelente álbum Contos Velhos, Rumos Novos, um LP que, curiosamente, integrou a inolvidável exposição evocativa daquele ano decisivo (nas lutas académicas e políticas contra a feroz repressão do regime fascista), que tivemos oportunidade de apreciar, há tempos, na Biblioteca Nacional [de Portugal], em Lisboa.
“Era de noite e levaram/Quem nesta casa dormia/ Sua boca amordaçaram/Com panos de seda fria (…)”. Assim cantava José Afonso, há cerca de meio século, no seu disco acima referido, assumindo, nesta inesquecível canção, sobre poema de Luís Pignatelli (1935-1993), a corajosa denúncia das prisões aleatórias e arbitrárias da PIDE/DGS. O perseguido e solidário criador de êxitos inconfundíveis, como, entre (muitos) outros, Canção de Embalar, Filhos da Madrugada, Verdes São os Campos, Só Ouve o Brado da Terra, Os Vampiros, Cantigas do Maio, Coro dos Tribunais, Coro da Primavera e Venham Mais Cinco, reavivava, deste modo, o espírito humanista dos “hinos” estética e ideologicamente interventivos, perspectiva de acordo com a qual, um dos mais sagrados direitos democráticos do artista e cidadão activo é o de expressar livremente os seus pensamentos e as suas opiniões.
Ex-candidato à Câmara de Setúbal
pelo PCTP/MRPP