Dragagens

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4 Fevereiro 2020, Terça-feira
Juvenal José Cordeiro Danado - Professor
Juvenal José Cordeiro Danado – Professor

 

A draga já chegou! – e foi como se tivessem dito que um monstro do princípio dos tempos, arribado a Setúbal, estava pronto a engolir os fundos da baía e a escavacar tudo a cada ronco da maquinaria diabólica, as águas inquinadas no revolver dos venenos compactados nas lamas, o adeus aos golfinhos-roazes e ao peixinho de grelha, as praias interditas, o prejuízo de pescadores, a economia e a vida da cidade e da sua população a pagarem as favas.

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Os protestos, de muitos meses, foram finalmente considerados e a besta impedida de arrancar. Mas já labora. É progresso, velhos do Restelo! – clama-se do outro lado da barricada, a voz de papo, que é o falar dos crentes incondicionais de qualquer coisa, que nunca têm dúvidas e não notam um nico de verdade na profecia da célebre personagem. Ceguetas! – não disseram mas pensaram. Tão ceguetas, acrescento eu, que ainda não repararam que a draga é verde, um verde viçoso, o verde mais bonito e ecológico do Bico das Lulas ao terminal ro-ro – e vivam as pérolas vocabulares marteladas na oficina do portinglês, onde economistas, políticos e outros doutores, patriotas de pê maiúsculo, suam generosas dedicações e aprontam contributos de relevo para a língua portuguesa.

Nos sítios eletrónicos dedicados à cidade vai uma acalorada disputa entre os pró e os contra. É muita a confusão. Não li nem ouvi contestações às dragagens de manutenção (tecla massacrada pelos pró), que são necessárias, dado o assoreamento constante. O que está em causa, na opinião dos especialistas do contra (Viriato Soromenho Marques é um deles), é a profundidade da dragagem e o volume extraordinário dos dragados, e bem assim os prejuízos e contrariedades que decorrem da operação e do tráfego de navios de porte e calado colossais, junto às praias e ao longo da cidade. É nestes que acredito, porque, não defendendo interesses próprios, sinecuras ou cadeirões de respaldo, não têm necessidade de impingir.

Vivemos numa tendência suicida para o olvido e a complacência relativos às ruínas do «progresso»: quem se lembra do que os químicos da Setenave e os despejos fabris fizeram ao estuário?; quem se lembra dos cheiretes irrespiráveis que da Socel e da Central Térmica vinham a Setúbal?; e do que os plásticos estão a fazer ao mar? Quem liga ao que nos chega de Sines (essa terra prometida!) quando o vento corre de sul? É o venham o prometido progresso e as riquezas anunciadas, depois logo se vê.

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Vêm aí gigantescos cargueiros com cargas de nos enriquecer e capacidade para levar tudo o que produzimos, e cruzeiros de muitos milhares de turistas que vão enjoando outras cidades europeias. Emprego e riqueza a rodos, felicidade às patadas, é mister acreditar nas «promessas de minas e de ouro» de que falou o velho pela pena de Camões. Os setubalenses podem ficar descansados, que há quem saiba tratar dos seus problemas, mesmo sem ouvi-los com ouvidos de ouvir. Quem governa dá as explicações que lhe apetece. Aos demais cabe obedecer, porque votaram neles. É a lógica da política, em democracia. E a roda do mundo continuará a girar para a banda que tem girado.

A draga está a fazer o serviço que lhe encomendaram uns senhores doutos em dragagens e progressos, e muito respeitosos das fragilidades do ambiente e fidelíssimos cumpridores dos estudos de impacto no mesmo. Acredite quem quiser. Se a coisa der para o torto daqui a uns tempos, não haverá responsáveis – a tradição tem muita força –, e o que houver a amargar, o povo amarga. E se o massacote, o alcorraz e o choco, o linguado e a sargueta, riquezas e sabores que são marcas de Setúbal e de que até ora desfrutámos, forem à vida, não há crise: comemos progresso.

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