“Não tenho concorrência”, afirma seis meses depois. Para que a tradição da boa comida do Alentejo não se perca, usa sabores regionais. Oferece “comida da avó” num local acolhedor, com um menu que muda diariamente
“Nunca gostei de coisas que fossem muito fáceis”, afirmou David Rolo Proença a O SETUBALENSE – DIÁRIO DA REGIÃO, para explicar porque escolheu Santiago do Cacém, um concelho com não mais de 30 mil habitantes, para abrir o seu negócio, aos 28 anos. Para o chef, de origem lisboeta, abrir uma casa no Alentejo “é um desafio”. Garante que não tem concorrência pois não há nenhum espaço “sequer parecido” com o seu.
“O Afeto nasceu de uma ressaca de querer trabalhar sozinho”, explica. “Queria abrir um projecto meu, encontrei este sítio e decidi avançar”, conta. “Quis dar uma oferta completamente diferente do que Santiago tinha” e mostrar que os restaurantes andam a “praticar uma má cozinha tradicional”.
Tem um grande objetivo. “Quando morrer quero que digam: ele foi um grande cozinheiro. Não é um grande chef, é um grande cozinheiro.”
David Proença formou-se em 2014 em Cozinha e Pastelaria, em Lisboa, na Associação de Cozinheiros Profissionais de Portugal (ACPP). Estagiou “no Altis, Rios, Bica do Sapato e no Ritz” onde ficou a trabalhar. Depois disso foi “para o InterContinental.” Num ano e meio chegou a sub-chef do restaurante Maria Pia em Cascais. Também trabalhou no Feitoria que tem uma estrela Michelin, onde só permaneceu três meses, dado que por motivos pessoais, se mudou para Inglaterra. Quando regressou instalou-se no Alentejo, em Vale de Água.
“Mudei-me para cá há dois anos. Fui para chef da Herdade da Matinha, onde estive cerca de seis meses. É um sítio maravilhoso para trabalhar, comecei a mudar o menu todos os dias.” Ainda assim, as ideias da empresa não eram compatíveis com as dele. “Decidi afastar-me. Se era para ser chef, era para seguirem as minhas ideias e não as ideias de outras pessoas.”
O dono do Afeto, cuja maior motivação é o crescimento pessoal e profissional e que tem como maior inspiração a avó, que sempre lhe disse para “tentar fazer um registo [seu] e não de outra pessoa”, confessa que a partir do momento em que o sítio não lhe dá novos desafios, não impulsiona ou empolga e não está a aprender, sai.
Tem como inspirações Marco Pierre White “um monstro da cozinha, que com a minha idade chegou às três estrelas Michelin”; Antoine Bourdain “por ser um gastrónomo e por conhecer muito de cozinha” e Patalino, um grande amigo. “Às vezes ia para o restaurante [de Patalino] para me lembrar que a minha vida era espectacular ao pé da dele, que cozinhava sem uma perna.”
Anda de jaleca, tal como os outros dois cozinheiros, José Gouveia, que é o seu braço direito, e Afonso Correia. Conheceu José Gouveia na Herdade da Matinha, onde este era estagiário. O José Gouveia é de Coimbra e estagiou na India, o que é uma mais valia para o Afeto a nível de conhecimento de especiarias.
O restaurante
“O Afeto é uma marca” que nasceu com investimento pessoal e uma enorme vontade de ter um negócio próprio. “Todo o dinheiro que investi aqui era meu. Passado um mês e meio recuperei-o e continuo a investir. Não tive um pai que me ajudasse.” Para David Proença, dar amor à comida é dar amor às pessoas e é isso que todos os dias tenta fazer. Foi por essa mesma razão que escolheu chamar Afeto ao restaurante. Como queria “apresentar pratos que as pessoas já não comiam há muito tempo e passar música desses tempos” houve, confessou, indecisão entre afeto e nostalgia.
“Eu tenho ideias muito próprias. O Afeto é uma casa pequena, mas tem standards” e a música, queixa mais frequente dos clientes, é um deles. David Proença explicou que quando lhe pedem para a baixar, muitas vezes não o faz. “Qual é a diferença entre um cliente me pedir para baixar a música e outro para levantar? É um cliente. Criei uma casa que em Santiago é difícil de encontrar, com standards. “
O Afeto é um espaço direccionado principalmente às mulheres “porque dão mais valor à decoração e aos detalhes.” E David Proença refere que cada detalhe no espaço, conta uma história. “Não tenho plantas no restaurante para parecer que é vegetariano ou para parecer um restaurante da moda. A minha avó tinha sempre uma horta e um jardim cuidado”. Inspirou a decoração nesta familiar. Pratos antigos na parede, colheres de pau, gravuras e cómodas antigas. Uma cómoda usada, tem 120 anos e foi restaurada pelo chef e pela namorada Catarina Gonçalves. “Quis uma decoração rustico moderna.” As cores foram pensadas, tal como as madeiras, as plantas e as luzes que servem para dar um aspeto mais confortável, um “ambiente caloroso”, alegre e de descontração. E destaca o rigor com a higiene e limpeza.
Apesar de se ter dirigido mais às mulheres, considera que tem um público variado e que o Afeto “é um espaço versátil”. Mesmo com maior adesão ao almoço, não se queixa da afluência nos jantares de quintas e sextas-feiras.
O jovem não esconde que ambiciona ter mais espaço e que este não foi o local que imaginou. “ Ainda quer comprar o espaço que era do Patalino, em Vale de Água, e expandir a marca. Não o fez antes porque a burocracia obrigou a que a ideia ficasse em espera.
A seu ver, o que distingue o Afeto Comfort Food&Bar dos restantes restaurantes da zona é a oferta diferente do habitual e a qualidade. “Não tenho nada contra as pessoas que trabalham como cozinheiros, mas não há cozinheiras de mão cheia como se dizia antigamente. A minha avó não tinha o curso de cozinha, mas cozinhava melhor do que eu. A ideia não é dizer que as pessoas que não têm formação não prestam. Falta-lhes é formação a nível de trabalho, rigor e brio profissional com as pessoas, não de escolaridade.” Sabe, ainda assim, que não é barato contratar um chef de cozinha com formação.
A cozinha
“O cozinheiro tem que dar amor. O Afeto nasce disso, de dar afeto à comida”, esclareceu David Proença. “O meu ideal de cozinha é a pessoa comer e levar uma bofetada na cara, de sabor”, referiu. Uma cozinha que “não tem filtros”.
“Não há nada que sobre do dia anterior, é feito tudo na hora”, e o menu é mudado todos os dias. “Os meus cozinheiros não me podem dizer que caem na rotina. Todos os dias fazem uma coisa diferente” e isso “é bom porque até funcionamos com estado de espirito.” De manhã, escolhem um prato de carne, um de peixe e outro vegetariano. Existe também a carta fixa com hambúrgueres, panquecas, tostas, saladas e smoothies “que as pessoas podem comer [e beber] à hora que quiserem”, sublinhou. Cozinhar as carnes muito tempo no forno, lentamente, faz parte, e não são utilizados sacos a vácuo e baixas temperaturas.
Na opinião do jovem lisboeta “a tradição está-se a perder. O Afeto parece ser muito moderno, muito in, mas a cozinha que se pratica é cozinha de conforto,da avó. Mas não apenas da avó portuguesa. Simplesmente tenho cozinha alentejana, no outro dia italiana e a ideia é fazer uma cozinha de fusão. A cozinha tradicional no Litoral são batatas fritas e carne de churrasco e isso não é cozinha tradicional alentejana. Acho que as pessoas se esqueceram ao longo do tempo.”
E continuou com as elucidações. “As pessoas dizem que ter um prato com espinafres crus e tomate cru é cozinha saudável. A cozinha tradicional portuguesa é saudável, desde que seja em proporções certas.” É por essa razão que prefere servir “tudo empratado”. Fazem, como disse, “uma apresentação mais cuidada, mas nada por aí além”, pois prefere “mostrar uma cozinha de sabor e não propriamente de vista”, até porque a seu ver “a comida feia é mais saborosa.”
Influência regional
David Proença afirma que há efeito da gastronomia regional, passando pela confeção de migas, cachaços e assados. “Não sirvo com batata frita, as pessoas estão mal-habituadas. Eu, por exemplo, tento aliar uma miga a um camarão.” Serve pratos típicos como as sopas de bacalhau e tomate, mas acha que não deve “servir todos os dias porque há espaços que aqui têm isso para oferecer”. Quanto à fusão entre tradição e modernidade, David Proença exalta: “Eu apresento à minha maneira.”
Mesmo tendo na carta, não vai “fazer queijos ou enchidos”, mas sim “buscar a uma pessoa que faça isso há 50 anos, que o pai lhe passou e que já é um negócio há 100. Querer fazer tudo pela raiz também mata um bocadinho a tradição, porque os pequenos negócios precisam sempre de ajuda.”
Utiliza alguns ingredientes biológicos, mas “num raio de 15 quilómetros, e eu próprio já vi isso, já fiz estudos, não há legumes biológicos. São todos a partir de sementes transgénicas” o que já é manipulação. Assim, o que puder usar biológico usa, mas não é muito fácil, disse ao jornal. Aproveita ervas aromáticas do próprio quintal, mas não consegue suportar o restaurante, “nem lá perto”. O pão é de Vale de Água. “Só funcionamos com pão alentejano”, tal como o vinho. Às vezes clientes levam-lhe legumes.
O maior desafio continua a ser o cliente santiaguense, que “não é fácil” e, mesmo para David Proença que anda sempre em busca da perfeição. O Afeto Comfort Food & Bar está aberto – todos os dias excepto ao jantar de sábado e domingo o dia inteiro – desde dia 31 maio 2019 e o preço médio de uma refeição é de 10 euros.
Texto de Marta Raimundo