Bote “Leão”, os varinos “Boa Viagem” e “Amoroso” e a nova e excêntrica muleta do Barreiro, passaram pelo Estaleiro Naval de Sarilhos Pequenos. Reconstruídos com segredos guardados por quatro gerações
Em Sarilhos Pequenos, o último estaleiro do país, dedicado à construção de embarcações tradicionais em madeira, guarda os segredos passados ao longo de quatro gerações. Uma arte que é candidata a Património Imaterial da Humanidade.
Mestre Jaime Costa segue ao leme de um lugar único, que em tempos, não muito longínquos, entre as década de 50 e 80 ocupava o seu lugar entre os 42 estaleiros de construção naval que existiam na margem sul do Tejo. “Terras de fragateiros onde eram raras as famílias que não estavam ligadas de alguma forma ao rio”.
Aos 66 anos, acompanhado pelo filho, Leonel Costa, de 35, mestre Jaime não esconde a emoção no rosto ao recordar o tempo em que os barcos tradicionais engalanavam o Tejo às centenas “e cada estaleiro era único, com os seus segredos de construção, que só os mestres guardavam”.
“A minha história aqui já tem 54 anos”. O seu pai, o mestre Jaime Ferreira da Costa, foi o farol da viagem. A despedida, há dez anos, “foi muito difícil, mas fica sempre o orgulho de manter o legado do meu pai”, assume.
Em 1955, Jaime Ferreira da Costa, pai, comprou o lugar que viria a ser o Estaleiro Naval de Sarilhos Pequenos.
A partir dos 10 anos, lado-a-lado com o seu pai, Jaime Costa começou a ter a consciência que este seria a sua vida. “Então com 11 anos eu e mais dois primos começamos a trabalhar no estaleiro como aprendizes, inseridos numa equipa com 8 calafates e 10 carpinteiros navais. Nessa época tínhamos muitos barcos a sair o ano todo, nem sei dizer quantos. Construíamos fragatas, varinos, canoas. Todo o estilo de barcos tradicionais”.
Quando mestre Jaime entrava nos seus 20 anos a construção de embarcações tradicionais em madeira entrou em decadência. “Foi o tempo dos holandeses e dos franceses entrarem no mercado com embarcações construídas em aço e fibra”.
As embarcações tradicionais só viriam a recuperar parte da sua força no final da década 90, com as potencialidades da actividade marítimo-turística e a aposta das câmaras municipais da Moita, Seixal, Montijo, Alcochete e, mais recentemente, do Barreiro.
O legado do Mestre
“Esta é uma arte que passa de pai para filho” conta o mestre Jaime Costa. “Se houver uma geração que não tenha o talento ou queria seguir um rumo diferente, o estaleiro de morre à partida. Nas mãos da minha família estão segredos de quatro gerações dedicadas a esta arte”.
Mestre Jaime recorda que tudo deve ao seu pai e não fora o conhecimento deixado em herança “não estaríamos aqui, hoje”.
Jaime Ferreira da Costa era de Pardilhó, terra de carpinteiros navais onde “chegaram a existir mais de 500 artesões dedicados a esta actividade”. Da pequena vila plantada nas margens da ria de Aveiro vinham varinos. “Transportavam madeiras pela costa. Uma viagem difícil porque estas embarcações não estavam dotadas para o alto mar. Com estas embarcações vinham os carpinteiros que acabaram por fixar as suas moradas nesta região”.
“Pessoas determinadas, com grande capacidade”, assim descreve mestre Jaime esse intrépidos artesãos entre os quais Jaime Ferreira da Costa foi o grande Mestre do estaleiro de Sarilhos Pequenos. “Foi inspirado na paixão do meu pai que eu abracei este ofício. E não imaginaria outra vida para mim. Devo tudo a ele”.
Quanto ao tempo que levou para dominar a arte, mestre Jaime admite. “Toda a vida”. Cada carpinteiro “tem o seu segredo”, admite. “Uma marca que deixa em cada barco que faz. A sua forma de trabalhar a madeira”.
Hoje as normas standard impostas pela Legalização da Construção Naval “já não permitem certa criatividade”, mas os segredos do rio e os legados continuam presentes, passados de geração em geração.
Embarcações pelo mundo fora
“De Sarilhos Pequenos já saíram embarcações rumo ao Brasil e Caraíbas”, conta mestre Jaime.
Actualmente, pelo menos quatro estão acostadas em França, propriedade de particulares. “Recordo “O Albarquel” e “O Abandonado”. Haverá também um varino em Inglaterra”. Embarcações compradas há décadas e que fizeram viagens em tudo improváveis, pelo Oceano Atlântico. “Ficamos estupefactos quando sabemos que uma embarcação nossa passou pelas Caraíbas ou pelo Brasil”. Como o caso do “Sejas Feliz”. Uma aventura, porque em tempos era impensável sair da barra com estas embarcações”.
Um “atrevimento” que segundo o mestre “veio dignificar a nossa construção naval”.
O novo fôlego da UNESCO
Com o projecto “Moita Património do Tejo” promovido pela Câmara Municipal da Moita, recuperam-se a cada dia tradições ligadas ao Tejo. EM destaque está o desafio de uma candidatura da arte de construção de embarcações tradicionais em madeira, tal como é feita no Estaleiro de Sarilhos Pequenos, a Património Imaterial da Humanidade.
A UNESCO dará o seu parecer final e quando chegar o tempo do reconhecimento mestre Jaime espera que um novo fôlego chegue a Sarilhos Pequenos e que ali nasça uma escola “para passar o conhecimento a novas gerações”.
Muleta do Barreiro está pronta e é única no país
A história das muletas que navegavam o Tejo entre as antigas embarcações tradicionais, remonta, talvez, a nove séculos, “quando os vikings andavam pelas costas da Europa, em campanhas de pirataria por tesouros, mantimentos e territórios”, imagina o mestre Jaime.
Ideias tiradas do livro “A Muleta” de Manuel Leitão, Ferdinando Oliveira Simões e António Marques da Silva. E foi também a partir dessa obra que fez o desenho da muleta, antiga embarcação tradicional do Barreiro.
“Depois de um ano de trabalho a embarcação está pronta, à espera do dia da partida, rumo ao Barreiro, para voltar a ocupar o seu lugar como glória do Tejo antigo”.
Jaime Costa nunca tinha feito um barco com estas características. Para o mestre este “é único no país” e há mesmo quem digo que “é uma relíquia”.
A muleta caracteriza-se por uma proa e uma ré com bicos e saliências, para defesa de outras tripulações que as abordavam para possíveis saques. As últimas da sua “espécie” deixaram o Tejo em 1910. “E há mais de 100 anos que não se construía uma nova”.
Novos barcos nascem com novas gerações
Leonel Costa coordena uma equipa onde a idade dos 70 anos é já um marco habitual. Coordena a aprende, enquanto o varino Vala Real vai nascendo às suas mãos e dos seus colegas de arte, entre medidas e segredos. O seu destino será a Azambuja.
Abraçar a profissão do bisavô, avô e pai “é viver um dia de cada vez”. A vontade de manter a tradição na família “surgiu de muitas horas a experimentar, a tentar e a construir ao lado do meu pai”.
Hoje novos barcos nascem às mãos de Leonel. E depois de passar pela pastelaria, o aprendiz já não imagina as suas mãos entre massas e açúcar.
Embrenhado entre barcos admite, “a continuidade é difícil porque não depende de uma só pessoa e a idade os meus companheiros avança”. Ainda assim o futuro em nada o assusta e acredita, “ que uma nova geração irá abraçar a arte da construção naval. Mas é preciso gostar, porque quem não gosta não consegue permanecer”.
Fotografias: Arsénio Franco