A primeira manifestação sesimbrense sobre a Revolução de 1974 em Sesimbra aconteceu em 30 de Abril desse ano, graças ao entusiasmo do mestre de pesca João Caparica, que chamou à participação a fanfarra dos Bombeiros com os intervenientes usando uma camisa “à pescador”; já no dia seguinte, em 1 de Maio, surgiu uma outra manifestação, ainda mais participada, em cuja liderança estava também gente ligada ao mar. O episódio é evocado no livro “A Revolução de 1974 em Sesimbra”, o mais recente título de João Augusto Aldeia, uma obra repleta de história(s) e de memória(s) sobre a vida e a sociedade sesimbrense antes e depois de 25 de Abril, num percurso a que não é alheio o facto de o próprio autor ter sido protagonista em algumas das acções, condição que é logo assinalada de início: “O facto de ter participado nos acontecimentos de um determinado período, numa dada comunidade, constitui uma vantagem ou uma limitação para escrever sobre esses acontecimentos?” A resposta junta as vantagens e as desvantagens, umas e outras devendo ser pesadas criticamente.
É por isso que, a seguir, João Aldeia justifica esta obra: “As ‘leituras’ feitas em Sesimbra em torno da comemoração dos 50 anos da Revolução de 1974 — quer as oficiais, quer as outras — primaram pela indigência, omitindo aspectos relevantes da Revolução (causas, consequências, efeitos positivos e negativos na comunidade). Foi repisada a versão de que ‘antes não acontecia nada’ e que depois tudo foi ‘magnífico’, tudo ‘conquistas da Revolução’, com destaque, neste contexto municipal, para o ‘poder autárquico’. Ou seja: nem uma sombra de dúvida, nem a mínima assunção de aspectos negativos, nenhuma reflexão sobre as iniciativas das populações ou os actos da administração, e o respectivo sucesso ou insucesso.” A intensidade do comentário serve para apresentar globalmente o conteúdo do livro — “um relato sucinto da vida social, cultural e política, anterior e posterior à Revolução de 1974”.
João Aldeia perpassa, depois, por uma diversidade de áreas, tendo em vista um retrato tão completo quanto possível do que foi Sesimbra nesses dois tempos históricos, apresentando dados sobre a população, a actividade económica (pesca, agricultura, turismo, pequena indústria), a guerra colonial, a habitação, as tentativas de preservação ambiental, a actividade política, a questão assistencial, a cultura, a educação, o movimento associativo.
Ao longo da apresentação de dados, o autor não deixa de ser crítico, como quando refere a exaustão dos “pesqueiros” (“nunca foram feitos estudos científicos sobre o problema, uma das mais gritantes falhas do nosso sector científico”), ou quando aprecia a criação em 1998 do Parque Marítimo da Arrábida (que, “sem sólido fundamento científico, foi apenas um placebo”), ou a propósito da construção clandestina na Lagoa de Albufeira (em que poucas demolições aconteceram devido a interferência de Marcelo Caetano), ou sobre a definição dos limites territoriais do concelho (lamentando que a Câmara não tenha ripostado, aquando da publicação do inerente normativo em 1972, às exigências dos concelhos vizinhos de Almada e Seixal, “uma neutralidade difícil de explicar e de aceitar”), ou relativamente às intervenções com razoável conflitualidade levadas a cabo por um autarca como Ezequiel Lino durante os sucessivos mandatos (com consequências políticas e sociais locais).
O trabalho de João Aldeia é fortemente apoiado em dados estatísticos, em registos de imprensa, em documentação da época, em testemunhos diversos e na sua própria memória de participante (que várias vezes menciona, ainda que com modéstia e discrição). Este levantamento serve também para fundamentar a crítica feita à celebração do cinquentenário de Abril, que, não atendendo aos circunstancialismos locais e não procurando reflectir sobre a história, passou ao lado da “dinâmica comunitária” e da “saudável confrontação entre as diversas ideologias” que animaram o período pós-Revolução — exemplo claro dessa ausência de leitura crítica é o de não ter havido uma reflexão sobre as causas que terão levado ao declínio do movimento cooperativista em Sesimbra, muito forte a partir de 1975, ano em que foi criada a Cooperativa dos Apanhadores de Algas Estrela do Sul, ou sobre o aumento da abstenção nos actos eleitorais, no que isso tem a ver com a participação cívica.
A obra é concluída com uma “Cronologia resumida do século XX em Sesimbra”, cujo primeiro registo data de 11 de Abril de 1900, assinalando a “greve dos pescadores das armações de pesca, com intervenção militar que provoca três mortos e numerosos feridos”. Curiosamente, o último registo desta cronologia respeita também à pesca, datado de final de 1999 — “em consequência da não renovação do acordo de pescas entre a União Europeia e Marrocos, a frota sesimbrense da pesca com aparelho de anzol (com cerca de 600 pescadores) ficará parada e a receber subsídios, durante dois anos.” A história local é, muitas vezes, uma boa imagem daquilo que é a história da participação…