Coordenador do ‘Dicionário da História de Setúbal’ alerta para o esquecimento planificado e reforça a importância da obra para garantir identidade e futuro da comunidade
No âmbito das comemorações dos 170 anos do jornal O SETUBALENSE, o historiador Albérico Afonso Costa lidera a coordenação do ‘Dicionário da História de Setúbal’, uma obra que reúne mais de 1.300 verbetes elaborados por cerca de 70 investigadores de diversas áreas académicas. A iniciativa, que está em desenvolvimento há cerca de um ano e meio, surgiu da convicção do coordenador de que “um povo que não conhece a sua história é como uma pessoa que tivesse perdido a sua memória”, e tem como objectivo proporcionar à comunidade setubalense, especialmente a estudantes e professores, um instrumento de referência sobre a história da cidade.
Em entrevista a O SETUBALENSE, Albérico Afonso Costa explicou que o projecto não é “uma ideia completamente nova”, mas uma oportunidade retomada para reunir um conjunto amplo e diversificado de informações históricas, desde a pré-história até à contemporaneidade, passando por temas sociais, políticos, económicos, culturais, desportivos e religiosos.
A obra inclui ainda sínteses biográficas de centenas de pessoas que “muitas vezes são esquecidas pela história institucional e política”, valorizando intervenções locais que marcaram a cidade.
O coordenador destacou os desafios da gestão de um grupo tão vasto de colaboradores, com diferentes estilos e áreas de especialização, mas realçou que a dimensão científica e o empenho dos investigadores facilitaram o trabalho, que define como “quase hercúleo”.
Albérico Afonso Costa espera que a obra “dê ponto de partida para outras investigações” e ajude a contrariar “a violência do esquecimento” que considera estar presente na sociedade actual, permitindo que a história local seja reconhecida como um elemento fundamental para a identidade e o futuro da comunidade.
Como é que surgiu a ideia de criar um dicionário da história de Setúbal?
Era uma velha ideia que eu já tinha e que agora havia a oportunidade de retomar este projecto, porque é um projecto que envolve muita gente, por isso não era uma ideia completamente nova. De resto, eu sugeri este projecto ao Francisco Alves Rito, e ele também o abraçou com grande entusiasmo, e por isso vai ser o editor do livro. O jornal sobre isso vai ser o editor no quadro dos 170 anos que o jornal vai fazer.
Qual foi a motivação para assumir o projecto de coordenação no livro?
Parte-se de um princípio básico de que a mim me tem sempre preocupado. Eu acho que um povo que não conhece a sua história, é de alguma maneira a mesma coisa que uma pessoa que tivesse perdido a sua memória, portanto, não tem, no fundo, identificação com a realidade, não tem perspectivas de encarar o próprio futuro. Nós vivemos, portanto, numa época em que há uma espécie de esquecimento planificado, e desse ponto de vista, quem despreza o seu passado, no fundo, está a apocalicar o próprio futuro.
Portanto, este é o princípio, um ponto de partida geral. Depois há aspectos, portanto, muito concretos. Este projecto editorial tem globalmente um duplo objectivo. O primeiro é proporcionar aos setubalenses, e particularmente a estudantes e a professores, um instrumento de informação acerca da história da cidade.
O segundo aspecto é trazer à luz do dia novas informações históricas e incentivar também a investigação nesta área do saber.
Como foi o processo de escolha dos autores e dos investigadores?
Para este projeto já estão a trabalhar, e vão trabalhar, mais de 70 investigadores de várias universidades e de escolas do País. Pessoas com uma diversidade de formação, portanto, muito grande, em termos académicos, em termos científocos e em termos profissionais.
A ideia foi de ver as pessoas que tinham feito investigação histórica sobre Setúbal, ou mesmo algumas que não tivessem feito investigação histórica, mas jovens investigadores, que estavam interessados em fazê-la, dando um conjunto de possibilidades, perspectivas para a realizar. Portanto, junta tudo isso. Por um lado, junta também, em termos etários, investigadores séniores e outros jovens, portanto, investigadores, que estão nas universidades, estão a tirar os doutoramentos, por aí fora. É um leque muito alargado de participantes, o que é estimulante, podemos dizer mesmo, que, de alguma maneira, é a maior obra coletiva que alguma vez foi publicada sobre Setúbal, com tanta gente, com tanta diversidade.
Quais é que foram os critérios que orientaram a selecção dos mais de 1300 verbetes?
O que me interessava era tratar uma pluralidade de temas grandes, desde a história social, política, religiosa, económica, desportiva, ao património histórico construído, algumas dimensões. Mas também tive como preocupação biografar algumas centenas de pessoas, que muitas vezes são esquecidas pela história institucional e política. São pessoas de Setúbal que viveram, ou que nasceram, em Setúbal.
O critério é que já tenham falecido e também que tenham feito uma intervenção na cidade em várias áreas.
Como foi conciliar as várias áreas científi cas e os diferentes estilos de escrita?
Em relação aos estilos de escrita, os verbetes e as entradas, têm o cunho das diferentes individualidades. Aí o coordenador não mexe.
Evidentemente que as coisas foram feitas a partir de trabalho já produzido nesta área. A coordenação não é fácil, coordenar 70 pessoas durante mais de um ano e meio é um trabalho quase hercúleo, porque são muitos mails que se trocam, muitas vezes há pedidos, numa determinada entrada faz-se um pedido de até 4 mil caracteres e mandam-nos uma entrada com 30 mil ou 40 mil. Coisas deste tipo foram frequentes e, evidentemente, também do ponto de vista científi co, houve muitas vezes a necessidade de se trocarem de impressões, mas o trabalho a esse nível foi relativamente fácil do ponto de vista da dimensão científica.
Que temas ou áreas é que acha que vão surpreender mais os leitores?
Há uma dimensão que tem a ver com trabalhos que já foram produzidos. Há uma participação, por exemplo, de um alambrar ao nível do desporto, porque às vezes é um parente pobre, as colaborações que vão ser feitas são de grande qualidade e dá-nos também a conhecer gente que esteve ligada ao desporto ao longo da história da cidade, que penso que vai ser interessante.
Há pessoas também que tiveram uma vida comum e que vão aparecer no dicionário. Foram dezenas e dezenas as pessoas que me foram sugeridas ao longo do tempo e, deste ponto de vista, acho que vai trazer algumas surpresas.
Há alguma entrada ou algum verbete que o tenha marcado mais?
Há imensos verbetes que eu acho muito interessantes, desde logo há alguns que tive a responsabilidade de fazer. Não vou distinguir em particular, mas, por exemplo, também há uma colaboração que achei interessante ter correspondido ao meu convite, que foi a do Bispo de Setúbal, que fez uma entrada sobre a acção católica muito interessante.
Este projecto pode ajudar a contrariar a ‘violência do esquecimento’ na sociedade actual?
É esse o desafio e no fundo o que eu pretendo é exatamente fazer com que essa memória desta comunidade não se perca, e para isso tem que haver produção científica.
O dicionário também é uma forma de tentar condensar a investigação que já foi feita, além de apontar também pistas e trazer coisas novas que nunca tinham sido investigadas. Mas tem essa função de compilar esse conjunto de informação e de produção científi ca, cultural, etc.
Considera que preservar a história local é um acto de responsabilidade cívica?
Eu penso que é fundamental. Quando digo que um povo que não conhece a sua história é como se o homem tivesse perdido a memória, essa dimensão, ao nível local, é exatamente a mesma coisa. Uma comunidade local, que não conhece a sua história, que não conhece o seu passado, está impreparada para encarar o futuro.
Desse ponto de vista, em termos locais, penso que este dicionário pode dar um contributo contra esse esquecimento planificado e essa perspectiva de viver unicamente o tempo presente, como se não existisse o tempo passado, como se as comunidades humanas estivessem vindo do bico de uma cegonha, que não tivessem mais nada pelo padrão.
Que tipo de investigações é que gostaria de ver serem feitas a partir desta obra?
No fundo, o que desejo também é que esta obra dê ponto de partida para outras investigações que, principalmente na área social, na área cultural, que são menos reconhecidas mesmo, ao nível da dimensão económica, penso que isto pode permitir abrir possibilidades dessas investigações. Agora, tudo depende da forma como a própria academia vai responder a estes apelos e os jovens investigadores possam pegar nesses temas.
Que mensagem gostaria de deixar aos leitores d’O SETUBALENSE que vão ler a obra?
No fundo, aquilo que pretendo é que esta obra lhes sirva como um instrumento de conhecimento desta comunidade, dos seus antepassados, e que seja um referencial também de formação ao nível das escolas. Penso que uma ideia que temos a elaborar desta obra é exatamente que ela sirva como um recurso para estudantes, para professores, para poderem estudar e aprofundar o conhecimento sobre esta matéria. Muitas vezes a história que é veiculada no sistema regular de ensino é sempre uma história geral, em que a história é igual de Norte a Sul do País.
Muitas vezes não se consegue aprofundar o estudo dos temas locais, ao nível das comunidades locais, por falta de recursos. E com este dicionário podemos dizer que os professores e os alunos, os estudantes, deixam de ter essa desculpa de não terem um recurso para poderem naturalmente trabalhar. E é importante, é claro que os professores, dentro da sua pluralidade de actividades, não têm tempo para se dedicarem à investigação histórica. Portanto, se tiverem recursos ao seu alcance, a tarefa fica mais facilitada.
O que representa este projecto no seu percurso académico e humano?
Podemos dizer que isto é um projeto de continuidade. Nos últimos 15 anos praticamente tenho me dedicado quase exclusivamente à investigação da história da cidade, da história de Setúbal. Não exclusivamente, mas quase. E este, no fundo, é um percurso normal, é um complemento normal dessa investigação que foi feita. Era impensável, se eu não tivesse tido este percurso, ao longo dos últimos 15 anos, poder coordenar este trabalho. Desse ponto de vista, há uma continuidade do trabalho de investigação. Espero que ele possa ser continuado por outros.
Existe algum projecto pensado? Alguma investigação que venha depois deste livro?
Há algumas que estão em mão, isto nunca termina. O que estou a pensar, depois de terminar este projecto, é estudar mais aprofundadamente o século XIX, estudar principalmente o período depois dos anos 50 do século XIX, em que foi um tempo de uma luta social de alta intensidade também na cidade, e que é pouco conhecida. Espero, com outras pessoas também, com outros investigadores, aprofundar essa época e esses tempos.