Conversa de chacha

Conversa de chacha

Conversa de chacha

4 Dezembro 2024, Quarta-feira
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A Marília nasceu em Lisboa, no vale de Alcântara, em 1930, filha de operários. Aos 2 anos perdeu a mãe, tendo sido criada por familiares e vizinhas no meio de grande pobreza. Não foi à escola na idade própria, mas aprendeu a ler e a escrever. Em 1939, com o começo da II Guerra Mundial, sofre com o agravamento das condições de vida das classes trabalhadoras, já por si miseráveis: são os racionamentos, as grandes fomes, o desemprego e a repressão, enquanto ao mesmo tempo Salazar envia toneladas de alimentos para as tropas da Alemanha nazi.

Quando a guerra termina tem a Marília 15 anos, toda a infância e adolescência vividas na pobreza. Sofreu e testemunhou toda a miséria a que eram condenados os trabalhadores, a injustiça e a violência que recai sobre os pobres e a degradação física e moral a que a miséria pode conduzir. Soube desde muito cedo que a pobreza não é uma escolha, mas uma condição imposta, tal como o expressou Almeida Garrett em 1846 ao perguntar “aos economistas-políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico.” Durante toda a vida a Marília reclamou pelos “que vivem com grandes dificuldades e privações, com fome e sofrimento” e pela urgência de acabar com esta injustiça.

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Uma expressão que ela usava era “conversa de chacha”. Costumava usá-la quando, numa discussão, alguém procurava justificar a sua posição fazendo observações absurdamente fora do tema. Como, por exemplo, em vez de contestar um argumento se aponta um aspeto qualquer da conduta pessoal de quem argumenta (“Estás a falar de pobreza, mas vives numa moradia.”) ou se procura rebaixar alguém por ser pobre (“Mais dinheiro para os pobres, para quê? Para gastarem em whisky?”).

É essa expressão dela que recordo frequentemente quando na televisão ouço governantes, “comentadores políticos” ou “politólogos”. Porque, quando se fala de pobreza, quando se diz que o dinheiro não chega ao fim do mês e que é urgente aumentar salários, lá vêm eles dizer: “Ui, não se pode!”. É a inflação, ou a guerra, ou a produtividade, ou as empresas não aguentam, ou os impostos, ou a COVID, ou as contas certas, ou os combustíveis, ou a dívida externa, etc. Arranja-se sempre uma razão. E os “maus” também variam: é o anterior governo, ou os ciganos, ou os imigrantes, ou os chineses, ou as empresas públicas, ou os russos, ou os terroristas, etc. Tudo com horas e horas de justificações, mas essencialmente para nunca falar da raiz de todos os conflitos sociais: a injusta e totalmente desigual distribuição da riqueza.

Da totalidade da riqueza criada anualmente, a fatia que vai para a imensa maioria da população que trabalha é cada vez menor. O trabalho é cada vez mais mal pago. Os salários não chegam para as despesas de habitação, alimentação, transportes, vestuário, saúde, educação. Cada vez mais gente se vê obrigada a ter dois ou mais empregos, a dormir menos que o necessário, a calar-se perante a prepotência dos patrões, a não ter tempo para viver com os filhos, a adiar tê-los, a não estar tranquilo quanto ao acesso à educação e aos cuidados de saúde, a não ter vida cultural, a não poder realizar os seus planos e projetos de vida, a não ter estabilidade no trabalho, a ter de adiar as suas vidas. O mundo do trabalho (em que se incluem aqueles que depois de uma vida inteira de trabalho merecem um final de vida digno) participa cada vez menos da riqueza.

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Do outro lado, a apropriar-se da maior fatia do bolo, temos uma pequeníssima percentagem da população a acumular fortunas imensas, algumas de milhares de milhões de Euros, enquanto o salário mediano em Portugal ronda apenas os 1000€ brutos por mês. Ainda para mais, o que se tem vindo a verificar é que, de ano para ano, os ricos acumulam cada vez mais e as suas fortunas crescem cada vez mais depressa. E com as suas fortunas cresce o poder, com políticos e governos ao seu serviço. Entre as empresas de que querem ser donos estão até as de um sector em que, não raras vezes, dão prejuízo: a comunicação social. Rádios, televisões, jornais. Porque será que têm interesse nestas empresas? A Marília responderia rapidamente: o principal conflito que é necessário resolver na nossa sociedade não é um conflito entre etnias, entre trabalhadores locais e deslocados, entre brancos, pretos ou amarelos (todos eles da mesma raça, a humana), entre crentes no deus A e crentes no deus B. O principal conflito é a injustiça na distribuição da riqueza, é o roubo, a quem trabalha, da possibilidade de ter uma vida realizada e com prazer em viver. É por isso que os ricos nos dão 24 horas por dia, em dezenas de canais, “conversa de chacha”: para que eles possam continuar a apropriar-se da maior parte da riqueza criada por todos, o que eles bem sabem que só durará até ao dia em que os trabalhadores não forem mais em conversas e, organizados, puserem fim a isto.

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