A Marília nasceu em Lisboa, no vale de Alcântara, em 1930, filha de operários. Aos 2 anos perdeu a mãe, tendo sido criada por familiares e vizinhas no meio de grande pobreza. Não foi à escola na idade própria, mas aprendeu a ler e a escrever. Em 1939, com o começo da II Guerra Mundial, sofre com o agravamento das condições de vida das classes trabalhadoras, já por si miseráveis: são os racionamentos, as grandes fomes, o desemprego e a repressão, enquanto ao mesmo tempo Salazar envia toneladas de alimentos para as tropas da Alemanha nazi.
Quando a guerra termina tem a Marília 15 anos, toda a infância e adolescência vividas na pobreza. Sofreu e testemunhou toda a miséria a que eram condenados os trabalhadores, a injustiça e a violência que recai sobre os pobres e a degradação física e moral a que a miséria pode conduzir. Soube desde muito cedo que a pobreza não é uma escolha, mas uma condição imposta, tal como o expressou Almeida Garrett em 1846 ao perguntar “aos economistas-políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico.” Durante toda a vida a Marília reclamou pelos “que vivem com grandes dificuldades e privações, com fome e sofrimento” e pela urgência de acabar com esta injustiça.
Uma expressão que ela usava era “conversa de chacha”. Costumava usá-la quando, numa discussão, alguém procurava justificar a sua posição fazendo observações absurdamente fora do tema. Como, por exemplo, em vez de contestar um argumento se aponta um aspeto qualquer da conduta pessoal de quem argumenta (“Estás a falar de pobreza, mas vives numa moradia.”) ou se procura rebaixar alguém por ser pobre (“Mais dinheiro para os pobres, para quê? Para gastarem em whisky?”).
É essa expressão dela que recordo frequentemente quando na televisão ouço governantes, “comentadores políticos” ou “politólogos”. Porque, quando se fala de pobreza, quando se diz que o dinheiro não chega ao fim do mês e que é urgente aumentar salários, lá vêm eles dizer: “Ui, não se pode!”. É a inflação, ou a guerra, ou a produtividade, ou as empresas não aguentam, ou os impostos, ou a COVID, ou as contas certas, ou os combustíveis, ou a dívida externa, etc. Arranja-se sempre uma razão. E os “maus” também variam: é o anterior governo, ou os ciganos, ou os imigrantes, ou os chineses, ou as empresas públicas, ou os russos, ou os terroristas, etc. Tudo com horas e horas de justificações, mas essencialmente para nunca falar da raiz de todos os conflitos sociais: a injusta e totalmente desigual distribuição da riqueza.
Da totalidade da riqueza criada anualmente, a fatia que vai para a imensa maioria da população que trabalha é cada vez menor. O trabalho é cada vez mais mal pago. Os salários não chegam para as despesas de habitação, alimentação, transportes, vestuário, saúde, educação. Cada vez mais gente se vê obrigada a ter dois ou mais empregos, a dormir menos que o necessário, a calar-se perante a prepotência dos patrões, a não ter tempo para viver com os filhos, a adiar tê-los, a não estar tranquilo quanto ao acesso à educação e aos cuidados de saúde, a não ter vida cultural, a não poder realizar os seus planos e projetos de vida, a não ter estabilidade no trabalho, a ter de adiar as suas vidas. O mundo do trabalho (em que se incluem aqueles que depois de uma vida inteira de trabalho merecem um final de vida digno) participa cada vez menos da riqueza.
Do outro lado, a apropriar-se da maior fatia do bolo, temos uma pequeníssima percentagem da população a acumular fortunas imensas, algumas de milhares de milhões de Euros, enquanto o salário mediano em Portugal ronda apenas os 1000€ brutos por mês. Ainda para mais, o que se tem vindo a verificar é que, de ano para ano, os ricos acumulam cada vez mais e as suas fortunas crescem cada vez mais depressa. E com as suas fortunas cresce o poder, com políticos e governos ao seu serviço. Entre as empresas de que querem ser donos estão até as de um sector em que, não raras vezes, dão prejuízo: a comunicação social. Rádios, televisões, jornais. Porque será que têm interesse nestas empresas? A Marília responderia rapidamente: o principal conflito que é necessário resolver na nossa sociedade não é um conflito entre etnias, entre trabalhadores locais e deslocados, entre brancos, pretos ou amarelos (todos eles da mesma raça, a humana), entre crentes no deus A e crentes no deus B. O principal conflito é a injustiça na distribuição da riqueza, é o roubo, a quem trabalha, da possibilidade de ter uma vida realizada e com prazer em viver. É por isso que os ricos nos dão 24 horas por dia, em dezenas de canais, “conversa de chacha”: para que eles possam continuar a apropriar-se da maior parte da riqueza criada por todos, o que eles bem sabem que só durará até ao dia em que os trabalhadores não forem mais em conversas e, organizados, puserem fim a isto.