No ano em que se comemora meio século do 25 de Abril importa revisitar o caminho percorrido pelo poder local democrático, um dos marcos mais importantes da Constituição da República de 1976, e o ponto em que nos encontramos em matéria de democracia autárquica. Isto é particularmente importante para aqueles que nasceram nos alvores de Abril e que cresceram com os valores e a esperança de Abril.
O poder local democrático significou, desde logo, o desenvolvimento e a infraestruturação dos territórios dos municípios, o desenvolvimento de políticas municipais de ambiente, sociais e culturais, de valorização do património e de afirmação das identidades locais. O abastecimento de água, o saneamento, a recolha e o tratamento de resíduos, o abastecimento público de bens, as bibliotecas, os centros de dia, as escolas, as atividades culturais e um sem-fim de outras atividades chegaram aos lugares mais remotos do território.
Cumpriu-se a esperança depositada pelas populações que, através do poder local, viram concretizarem-se necessidades e aspirações antigas. Tratou-se de um processo amplamente participado que mobilizou cidadãos a participar na vida coletiva e na tomada de decisão. Mas foi também um momento de afirmação das mais amplas liberdades, de mais justiça, mais igualdade e de aprendizagem do exercício da cidadania em democracia.
Estas dinâmicas transformadoras continuam e são o foco central do poder local e do trabalho realizado pelas autarquias. Um processo que se foi intensificando com o aumento da riqueza coletiva e com a integração de Portugal na União Europeia e com os recursos financeiros a que o país passou a ter acesso, pesem embora as muitas dificuldades ainda existentes.
Mas hoje outros desafios se colocam ao poder local democrático. As autarquias foram e são também uma escola para o exercício da cidadania e da participação política. São, na hierarquia do poder, as estruturas mais próximas dos cidadãos, dando substância ao princípio da subsidiariedade, e aquelas em que os cidadãos podem ter uma participação mais imediata e com resultados mais palpáveis.
Esse papel torna-se atualmente ainda mais relevante, num momento em que o sistema democrático sofre processos de erosão, ocasionados por um aumento da abstenção eleitoral, expressão de enfraquecimento do sistema representativo, por um aumento dos populismos de diversos matizes, agravado por processos judicialistas que a comunicação social explora e amplia até à exaustão.
Se a democracia representativa não garante que os cidadãos se reconheçam e participem em pleno nos processos de decisão, sendo comuns as críticas a um certo divórcio entre representantes e representados quanto à execução dos programas e compromissos políticos, importa enriquecer a democracia pela via participativa e deliberativa.
É neste quadro que importa restituir ao poder local democrático uma cultura de valores e virtudes característicos de uma ética republicana da qual, em muitos casos, parece que nos estamos a afastar.
A abertura do campo de participação a candidatos independentes surgiu com a perspetiva de enriquecimento da democracia, acrescentando-lhe a afirmação de alternativas, o reconhecimento do mérito e experiência dos candidatos, novos pensamentos políticos e uma certa fuga às oligarquias dos partidos tradicionais. Se nalguns casos se trata da afirmação de atores aos quais é reconhecido um trabalho meritório e de destaque em prol do desenvolvimento dos concelhos, noutros casos não passa de um regresso ao passado, por vezes suportado em redes clientelares. É frequente que não correspondam a verdadeiras expressões de independência, mas antes resultem de dissidências ou querelas pessoais, não configurando verdadeiras alternativas.
É atendendo à necessidade de reforço da democracia local que há que recordar que a liberdade, a igualdade, a fraternidade e a justiça são valores que devem ter expressão concreta na conduta dos atores políticos nas autarquias locais.
Paulo Ferreira da Cunha (2010) aborda o tema em “Para uma Ética Republicana” chamando a atenção para a universalidade e particularidade dos valores, mas também para a expressão concreta das virtudes, demonstrada por ação ou omissão dos atores políticos, vendo nas virtudes a categoria ética que dá expressão aos valores. Estas são características dos indivíduos, e a sua presença é essencial para a saúde do regime democrático republicano.
Prudência, coragem, temperança, justiça, leveza, agilidade, rigor, exposição, pluralismo, coerência, inteligência e autoridade, são virtudes essenciais. Mas atenção, como bem se sabe, o poder corrompe, tanto mais quanto mais absoluto. Neste particular, o respeito pelo trabalho coletivo é um bom antídoto contra as arbitrariedades do poder. O espírito de serviço e o foco na missão pública desinteressada, são virtudes estruturantes da conduta, numa lógica de servir, e não de servir-se. A fuga à exibição, ao fausto, o comedimento, o respeito pela verdade, são características a valorizar no bom autarca. O respeito pela dignidade humana é um pilar fundamental da democracia. E, recorde-se, todo o excesso é contrário à virtude.
Pluralismo, moderação, razoabilidade, trabalho, convivência, respeito pelas diferenças, sentido crítico, respeito pela dignidade humana e pela cidadania, são características fundamentais do bom autarca. Tais como competência, honestidade, sensibilidade social, sentimento de união com a comunidade, visão de futuro, respeito pela tradição. Serviço e dedicação públicos, desapego ao lugar público, sem mágoa, ressentimentos e sede de poder, rigor e parcimónia na gestão dos dinheiros públicos, respeito pela legalidade, despojamento, sem tentações de tirania, contra o privilégio, as mordomias e o nepotismo, o bom senso, a boa formação cívica, contra a corrupção, pelo respeito pelo rigor, transparência e separação de poderes, contra as cortes e as redes clientelares, que se alimentam de confusões e promiscuidades. E, por fim, a ordem, a hierarquia e o respeito, contra os maniqueísmos e as demagogias, a rejeição do culto da personalidade, a recusa do patrimonialismo. Estes são elementos fundamentais da ética republicana a respeitar também no poder local.
Em tempos de erosão da democracia, de populismos, judicialismos e controlo comunicacional de massas, mais relevante que a obra executada são o contributo que a cultura democrática, a ética e as práticas dos autarcas, os seus valores e virtudes, dão para a boa saúde da democracia local. A obra sempre se faz, assim estejam reunidos a vontade, os recursos, a capacidade técnica e a competência de decisão. Já a cultura democrática, o comportamento ético, o foco no serviço público, a boa gestão dos recursos públicos, são elementos que se criam e devem respeitar, que enobrecem e contribuem para a saúde da democracia e que fazem da política uma atividade nobre, destinada a servir a comunidade. Os comportamentos dos atores políticos, para o bem e para o mal, dizem muito sobre aquilo que se pode esperar deles.
O bom político não é só aquele que faz obra, é também, sobretudo e cada vez mais, aquele que tem valores e virtudes de uma ética republicana, aquele que contribui com o seu comportamento para a elevação da política local e para a saúde da democracia local. Sobretudo em tempos como aqueles que vivemos na atualidade. O poder local democrático não é uma feira da bagageira em que os votos se conquistam em troca de obras ou de objetos. É uma construção coletiva, um exercício de elevação e participação, de todos e para todos, com valores e com virtudes, com ética política, um regresso à polis da Antiguidade Clássica Grega.
Se as obras sempre se fazem, já quanto aos critérios das escolhas podem muitas vezes ser questionados. Basta recordar que os regimes autoritários sempre foram pródigos na realização de obras, muitas vezes grandiosas e apologéticas, muitas vezes contra a vontade das populações, que são sempre quem as paga, muitas vezes apenas para alimentar o narcisismo e para gáudio dos próprios autocratas.