A estratégia seguida por Isabel Rio Novo ao longo das cerca de 600 páginas de “Fortuna, Caso, Tempo e Sorte – Biografia de Luís Vaz de Camões” mistura o que é possível obter dos poucos documentos que existem sobre a pessoa do biografado, as opiniões que têm sido emitidas pelos variados biógrafos que tomaram o poeta como estudo (concordando com uns, discordando de outros, seguindo alguns), a obra literária conhecida no que possa ter de confessional ou de autobiográfico (não sem que haja a recusa, várias vezes referida, de seguir uma interpretação literal de tais textos) e a técnica literária da construção de romance (que a autora domina), destinando-se esta a preencher os espaços e os tempos de que não há informação precisa na vida de Camões, fundamentada em elementos de estudos sobre a época que garantem a sustentação das hipóteses interpretativas — é assim que se valoriza o efeito sugestivo trazido por termos como “imaginemos” (proposta ao leitor em diversas ocasiões), por formulações de convite a uma descoberta comum ao leitor e a quem narra (“Sigamos Camões até junto da Ribeira de Goa”, para, depois, nos ser apresentado aquele espaço nos domínios da arquitectura, da estrutura social, do quotidiano) ou, já na fase em que se prepara a publicação de “Os Lusíadas”, a apresentação de uma possibilidade, a propósito do encontro entre o autor e o inquisidor, quando “o mais plausível é mesmo pedir ao leitor que imagine Camões, que vivia na encosta de Santana, a apoiar-se nas muletas, a propender para a Baixa e a dirigir-se lentamente ao convento dos dominicanos, a ordem a que geralmente pertenciam os inquisidores.”
Com estes pedidos de colaboração, está-se a envolver o leitor na construção da trama, sobretudo naqueles segmentos que não estão absolutamente documentados, mas que são indispensáveis para que a vida tenha acontecido. Aliás, Isabel Rio Novo dá conta, em várias ocasiões, da dificuldade de reconstituição, como acontece no início do capítulo que aborda a vida do biografado na Índia — “O ano de 1555 é aquele a partir do qual a cronologia de acontecimentos na vida de Luís de Camões impõe mais desafios a um biógrafo.” E, uns parágrafos adiante: “formar e juntar as peças que permitem reconstituir o itinerário do serviço militar, das viagens e das etapas de Camões no Oriente ao longo deste e dos próximos capítulos foi um verdadeiro desafio.”
Uma das formas interessantes como Isabel Rio Novo se embrenha neste “desafio” é, por exemplo, o momento em que tem de relatar a vida de Camões na prisão em Goa (onde foi parar por decisão do governador Francisco Barreto, na sequência de uns textos satíricos), recorrendo à iluminura que representa o poeta na prisão goesa, descoberta em 1972 — o leitor percorre duas páginas e meia de descrição da iluminura, processo que serve para que a sua personagem central, Camões, nos seja apresentada em pleno labor de “Os Lusíadas”. O desenho não é reproduzido nas páginas do livro, mas é amplamente dissecado naquilo que pode ser a informação útil para se imaginar a forma como o poeta viveu este tempo de enclausuramento e a maneira como construiu o seu mundo entre as quatro paredes da cela… Por outro lado, este desenho é valorizado como documento autêntico, muito provavelmente pintado por amigo que tenha sido visita assídua daquele espaço — uma obra que teve também as suas mutilações, pois, na legenda gravada no verso, consta a informação “Luís de Camões preso, e tendo a seus pés quem quis perdê-lo na Índia”; ora, “na zona inferior do retrato, sob os pés do preso, a olho nu apenas se vê uma mancha de tinta negra, aparentemente aplicada para ocultar a identidade de quem lá estivesse representado”, possibilidade que ganha crédito se pensarmos que está provado ter essa camada de tinta sido aplicada num tempo posterior à elaboração do quadro…