Os murais na cidade de Setúbal inspiram a longa investigação da profissional de comunicação. Com uma vida dividida entre o jornalismo e os projectos sociais é agora ‘o cérebro’ de uma iniciativa que coloca pessoas de todas as idades na rua para colorirem as paredes com reivindicações
Helena de Sousa Freitas, 48 anos, é coordenadora do projecto setubalense “Histórias que as Paredes Contam”, tema que dá também nome à sua tese de doutoramento em Ciências da Comunicação no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE) mais concretamente “Histórias que as paredes contam: o muralismo como forma de comunicação: alternativa na cidade de Setúbal (1974- 2014).”
É, além disso, licenciada em Comunicação Social pelo Instituto Politécnico de Setúbal, pós-graduada em Direito da Comunicação Social pela Universidade de Lisboa e mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação pelo ISCTE.
No seu percurso enquanto jornalista passou pela imprensa local da cidade de Setúbal e ‘saltou’ depois para a Agência Lusa, onde fez parte dos quadros.
É gestora de projecto no Festival Internacional de Cinema de Setúbal (Festroia) e, em 2017, foi nomeada Embaixadora da cidade pela Câmara Municipal de Setúbal.
Sempre muito interessada pelas histórias dos vários murais inscritos nas paredes setubalenses é sobre este assunto que se tem debruçado há vários anos com o intuito de estudar os motivos quem levam a que as pessoas pintem pelo que lutam.
Explica que foi depois da Revolução dos Cravos que os murais se começaram a intensificar na cidade, com várias mensagens de ordem e que estes podiam ser assinados por apenas uma pessoa, um grupo, uma colectividade ou um partido político.
Nascida depois do 25 de Abril de 1974 não esquece as dificuldades passadas pela mãe antes e depois do Dia da Liberdade, e das vivências do bisavô enquanto opositor ao Estado Novo e resistente antifascista.
As inscrições de murais são protestos silenciosos ou são capazes de fazer mais barulho do que uma multidão em uníssono?
Os murais representam sempre pelo menos uma voz, sendo que, por norma, representam até um coro de vozes, e a sua mensagem, porque inscrita na via pública, soa abertamente nesse espaço que é de todos. Assim, por silenciosos que aparentem ser, eles podem dar-se a ouvir de forma clamorosa e, se perdurarem, conseguem fazê-lo por muito mais tempo do que aquele que uma multidão se aguentaria a gritar.
De que forma é que os murais, os grafitti ou qualquer tipo de inscrição que seja visto por muita gente é capaz de ter impacto na democracia?
Embora o impacto concreto de um mural, ou inscrição similar, seja sempre difícil de avaliar, as respostas a um inquérito que em 2013 apliquei a cerca 600 pessoas em Setúbal, mostram que o impacto existe e não é de desprezar.
Nessas respostas, vários inquiridos revelaram ter tido conhecimento de certos temas através de murais pintados na cidade, ou destacaram o facto de dadas pinturas os terem feito pensar sobre um tema específico de uma perspectiva diferente da que era a sua.
Ora, se considerarmos que a vertente informativa do mural o torna um meio de comunicação válido, ainda que não convencional, e se virmos a informação como um sustentáculo fundamental da democracia, o seu contributo para uma saudável vivência democrática não deve ser negligenciado.
Na sua tese de doutoramento é possível observar dezenas de murais inscritos nas paredes da cidade de Setúbal, mas cujas ‘necessidades’ vão mudando com o passar dos tempos. “Mudam- se os tempos, mudam-se as vontades”, os problemas da sociedade estão a ser resolvidos ou há alguma outra explicação?
Os murais surgem ao sabor dos tempos, revelando necessidades de um específico momento, lugar e conjunto de pessoas. Como tal, variam em função de qualquer destes três elementos, fazendo com que aquele que é um tema premente numa altura possa, em relativamente pouco tempo, dar lugar a outro, cuja abordagem entretanto se mostre mais necessária. No fundo, a lógica difere escassamente da que os jornalistas seguem num órgão de comunicação social, em que os assuntos se vão sucedendo em função da relevância e da actualidade.
Aliás, foi por me aperceber desta coincidência que decidi fazer o doutoramento em torno do tema, investigando o papel comunicacional do mural.
Depois de Abril de 1974, qual foi o cenário que se viveu, do ponto de vista muralístico, sendo que já não havia lápis azul que pudesse impedir as pessoas de se manifestarem?
Imediatamente após a 25 de Abril, durante o Processo Revolucionário em Curso (PREC), assistiu-se a uma autêntica explosão de pichagens e murais, com autores de todo o espectro partidário, do Partido Comunista dos Trabalhadores Portugueses (MRPP) ao Partido Popular Monárquico (PPM).
O que terá ocorrido não apenas por as pessoas se poderem expressar sem censura, como por os partidos rapidamente terem percebido que estavam perante uma forma de comunicação económica, directa e de vasto alcance.
O “Histórias que as Paredes Contam 50 Anos de Muralismo em Setúbal” integra o programa do município para comemorar o meio século da Revolução dos Cravos. De que forma é que o projecto conseguiu avivar as memórias de Abril?
Aquilo a que assisti – quer durante a execução dos murais promovidos pelo projecto, quer durante as conversas públicas que organizamos ou à margem das mesmas – foi a uma animada partilha intergeracional de histórias, processo que permitiu a quem já nasceu com a liberdade na mão ter uma noção mais concreta do quão duro foi conquistá-la.
Volvidos esses 50 anos de murais inscritos em toda a cidade, e tendo por base a sua extensa investigação e o registo de tantos, como é que está a cidade em termos de luta de pincel em riste?
É interessante constatar que, apesar do acesso generalizado a meios de divulgação mais velozes, práticos e modernos, como as redes sociais, as paredes não foram esquecidas enquanto suporte e recurso comunicacional, e enquanto veículo difusor de mensagens.
Focando-me apenas no presente ano, e sem querer tomar para exemplo os do projecto que coordeno, surgiram nas paredes murais contra o transporte marítimo de animais vivos [por iniciativa do partido Pessoas-Animais Natureza (PAN) e da Plataforma Anti Transporte de Animais Vivos (PATAV)], pela inclusão da travessia do Sado no passe Navegante [assinado pelo Bloco de Esquerda (BE)], e de apoio à causa palestiniana (pela Plataforma Unitária de Solidariedade com a Palestina), entre outros de mero apelo ao voto.
O operariado, os sindicatos, o movimento associativo e as mulheres estão em grande destaque quando o assunto são os murais de Setúbal. Consegue descrever de que forma é que estas lutas em tempos passados conseguiram contribuir para a camada social que temos aos dias de hoje?
Por norma, os murais são pintados por quem não está numa posição de poder e pretende, através da sua acção no espaço comum, alertar para desigualdades e injustiças.
Essa acção, sobretudo se continuada, tende a colocar temas na agenda mediática e até política, fazendo com que os mesmos ganhem visibilidade e percam o seu eventual carácter marginal. São disso exemplo a luta dos sindicatos pelas 35 horas de trabalho semanal, que se fez com amplo recurso à pintura de murais, ou as campanhas levadas a cabo por alguns partidos e associações em prol do direito ao aborto ou da eliminação da violência sobre as mulheres, tema este que, só na última década e meia, motivou murais de estruturas como a Sociedade De Estudos E Intervenção Em Engenharia Social (SEIES) ou o Movimento Democrático de Mulheres (MDM) e de partidos como o Partido Comunista Português (PCP) e o BE.
Ainda que exigentes e de resultados raramente imediatos, estes esforços de sensibilização não só contribuem para uma sociedade mais esclarecida, como conseguem, efectivamente, impulsionar ou até impor assinaláveis mudanças.
Não fosse assim e teríamos hoje o país de há trinta ou quarenta anos. A evolução civilizacional faz-se, em grande medida, por estes caminhos, árduos e sinuosos mas necessários.
O que é que significa para si o dia 25 de Abril de 1974?
Tanta coisa que se torna difícil responder… Mas a mais imediata de todas talvez seja a conquista da liberdade de expressão. Talvez assim o sinta porque – fruto da paixão pela literatura e dos muitos anos de jornalismo – encaro a palavra como o início de tudo. E podermos escrever o que pensamos, dizer abertamente como nos sentimos ou gritar bem alto o que queremos sem acabar nas mãos de um torturador e/ou na prisão tem um valor incalculável.
E que jamais podemos esquecer, mesmo que não tenhamos vivido na pele a dura realidade anterior à democracia, a qual nunca está definitivamente ganha.
Tendo nascido no pós-Revolução dos Cravos, há alguma história que tenha ouvido e que considere que seja ideal para retractar como se vivia à época?
Eu sou bisneta de um resistente antifascista chamado Francisco Lino e, embora nunca o tenha conhecido, pois faleceu sensivelmente duas décadas antes de eu nascer, cresci a ouvir relatos do que de mais terrível ele experimentou enquanto opositor ao Estado Novo. E não apenas na prisão, como fora dela, pois, mesmo quando não estava detido, tinha a vida extremamente dificultada para obter trabalho, não obstante a integridade e as capacidades que muitos lhe sabiam e admiravam.
Isto porque até amigos que se encontravam em posição de lhe dar emprego se escusavam a fazê-lo, temendo represálias, o que acabaria por conduzir toda a família a seu cargo a uma condição deveras precária.
Ainda este ano, na sequência de um convite da Escola Básica do Monte Belo para que ali partilhasse com os alunos as recordações de uma infância passada em ditadura, a minha mãe descreveu a fome que conheceu e o ostracismo de que foi vítima quando criança apenas por ser neta de quem era. São memórias inapagáveis e ainda hoje dolorosíssimas.
Quem afirma querer de volta esses tempos, decerto não viveu esta realidade.