Um olhar sobre as edições que o jornal publicou logo a seguir à Revolução. Edições que noticiam 25 de Abril e 1.º de Maio são “diametralmente opostas”
Esfregamos os olhos e ainda nos custa a crer no que vimos e ouvimos” é a frase primeira do texto ‘Libertação da Liberdade’, vestido de vermelho, que descreve e interpreta a mudança acontecida no país nas últimas 48 horas de um Abril renascido. A incredulidade manifestada por C. Figueira, o autor do texto, prossegue numa longa prosa dividida por duas páginas do jornal, edição de dia 26: “O choque da surpresa motivou a natural emoção de que ainda não estamos totalmente refeitos”.
Testemunho estremunhado, que procura entender o antes e o depois, manifesta-se de um modo particularmente sensível quando relata “O inacreditável aconteceu”.
Aconteceu, para espanto tamanho, aconteceu e foi de tal forma disruptiva a revolução em marcha que os olhos de tantos se “esfregam” em busca de uma focagem nítida da nova realidade – “Ninguém, ou pouca gente, acreditaria ser possível qualquer movimento que viesse alterar a situação decorrente há cerca de cinquenta anos”.
Segue o texto enaltecendo a grandeza do feito do Movimento das Forças Armadas e, a maiúsculas, o carácter heróico do “BOM POVO PORTUGUÊS”. Antecede o título do presente texto que observo, ratado e carcomido nas margens, mas que permite a leitura fidedigna do material impresso, o curioso prenúncio – “Fazendo o ponto da situação”. E essa foi uma das urgências editoriais assumidas, ou seja, procurar ler, descodificar e aclarar o que saíra da madrugada esperada para fazer nascer a primeira página de tantas que traduzem “o dia inicial inteiro e limpo”.
A primeira página de O SETUBALENSE de 26 de Abril de 1974, defensor dos interesses do distrito de Setúbal, é completada com a notícia titulada em jeito programático e conceptual – Definição de orientação. Título difuso, vagamente informativo e que apenas a leitura do texto, esclarece os propósitos das gordas apresentadas. Anuncia-se, então, em traços genéricos, o programa da Junta de Salvação Nacional, documento a que forçosamente se subordinará o governo até ser eleita a Assembleia Nacional Constituinte. Foi opção do jornal plasmar, na totalidade, o referido texto, alegadamente com uma função pedagógica e de esclarecimento da opinião público sobre o processo revolucionário em curso.
É omisso, da página que anuncia as gordas, qualquer facto ocorrido na cidade de Setúbal, ou mesmo no distrito, sendo igualmente omissa a ilustração com fotografia de algum momento marcante.
Não há vivalma nesta portada, nenhuma presença humana, num espaço que, graficamente, é totalmente ocupado com texto de alto a baixo.
Assim, a publicação denota uma particular contenção editorial, provavelmente coadjuvada de posicionamento ideológico. Sob o ponto de vista visual, revela um certo conservadorismo e prudência, ao contrário da concorrência que foi particularmente efusiva na escrita e na forma.
Enquanto o olhar se detém nesta edição, registam-se algumas notas sobre pequenos anúncios e publicidade a marcas internacionais.
Assim, a Móveis Guerreiro reclama três títulos que distinguem esta casa na Avenida Luisa Todi, 448, com o telefone 23453, a saber “Prontidão, competência e preços baixos”. Na Rua Almeida Garret, 30, são as sucatas que fazem mexer a economia local: “Pagam-se ao melhor preço” e fica-se a saber que se “vende carvão de forja”. Há um trespasse, a não perder, aqui mesmo ao lado deste trissemanário, na Rua Arronches Junqueiro, 71 – “A Pensão Relâmpago” quer mudar de mãos e reclama bons créditos – “com muito movimento, tanto em serviço de restaurante como dormidas”. Para os abonados, um quarto de página dá a conhecer “Tudo o que há de melhor num automóvel – Renault 16”!
Diametralmente oposta, a primeira página que reporta as comemorações do 1º de Maio, sexta-feira, dia 3, manifesta uma explosão de elementos que fazem dela um exemplo documental com especial relevância jornalística e social. No topo, o jornal de Carlos Bordallo–Pinheiro, director e proprietário, apresenta um mar de gente numa fotografia a preto e branco, não havendo espaço sequer para acrescentar um alfinete. A reportagem assinada por Rogério Severino, decano da actividade jornalística em Setúbal e na região, remete para a página 4 o título que rasga uma janela a toda a largura – “O Povo, Unido, Jamais Será Vencido!”. Lá voltaremos. Em espaço de análise, sente o periódico a necessidade de justificar a sua matriz regional, sublinhando que face ao “turbilhão de acontecimentos” se torna difícil a um “modesto jornal “dar conta da evolução político social.
Dada a natureza da publicação, merece ser transcrito o seguinte excerto:
“Está na limitação da nossa capacidade a boa vontade de tentativa de relato ou cobertura de acontecimentos decorrentes na nossa área de jurisdição, que outra não pretendemos para extra-distrito de Setúbal”. Afirma-se a evidência territorial, os escassos recursos humanos e a tomada de posição sobre as opções de carácter noticioso. Mais algumas notas sobre a primeira página para fixar o título “Livre! Livre! Livre!” de Cabral Adão. O poema 25 de Abril, de Maria Odília Batel – “Alegremente clamando a liberdade / Soldados e o povo formaram multidões…/ Foi tudo tão sincero, tão simplicidade/ Como as flores que eu vi na boca dos canhões”. Marca da mudança social, surge ainda na notícia que não só informa como interpreta – “Inédito em Portugal – Funcionários públicos querem sindicatos”.
Em rodapé, a caixa verde, um clube a fazer bater forte os corações “Vencer o Porto uma necessidade do Vitória. Prestigie o futebol setubalense, apoiando no domingo a equipa vitoriana”.
De regresso ao relato de Rogério Severino, cujo texto é de uma enorme e envolvente clareza visual. Do início, retiro por me parecer fundamental o acto de honestidade e de paixão – “Vale a pena viver, só para escrever esta reportagem. Vale a pena ser homem para sentir a alegria de um povo”. Torna-se evidente que o discurso oscila entre a objectividade e a interpretação, vacilando por isso entre o domínio do factual e do opinativo. As quinze horas vividas no Largo do Bocage são passadas em revista e delas feito um relato pormenorizado e impregnado de emoções – “Nunca tal foi visto, nem durante as grandes manifestações feitas ao Vitória.
Não havia chão sem gente, não havia gente sem flor. Nas árvores, candeeiros, janelas, em todo o lado onde o corpo humano pudesse chegar, havia alguém”. E das palavras do repórter se faz memória viva para que o discurso feito jornal seja um documento permanente em todas as gerações.
Com verdade, com rigor, mas também com emoção!
*Professor de Comunicação e Jornalismo na Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Setúbal, doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa, Jornalista