Decorria o mês de Fevereiro do ano de 1974, quando o general António de Spínola publicou o livro intitulado “Portugal e o Futuro”.
Marcello Caetano tinha chegado ao poder seis anos antes, em 1968. Nesse mesmo ano, Salazar tinha sido exonerado por incapacidade na sequência da famosa queda da cadeira.
O sucesso do livro foi imediato: 50 mil exemplares vendidos no dia em que foi posto à venda, com uma grande procura em todo o país.
Este livro assumiu uma importância transcendente, uma vez que era a primeira vez que uma voz de um dos mais altos comandos das forças armadas– um ex-comandante do exército na Guiné Bissau – ultrapassava uma das principais linhas vermelhas da ditadura, admitindo publicamente que era virtualmente impossível uma solução militar para a guerra.
António de Spínola detinha um enorme prestígio, nomeadamente nas forças armadas.
Em 1961, quando deflagrou a Guerra Colonial, Spínola ofereceu-se como voluntário para combater em Angola. Na ocasião, era tenente-coronel.
Homem corajoso, física e psicologicamente, Spínola era o primeiro a avançar à frente das tropas, a embrenhar-se no mato, a envolver-se directamente nos combates, a comer o que comiam os seus homens, ganhando o seu respeito e admiração, uma vez que este era um comportamento nunca visto anteriormente num oficial superior.
Terminada a comissão, regressou à metrópole, convicto que o fim do conflito teria de passar necessariamente por uma solução política.
Spínola era da opinião que o regime deveria implementar um projecto de descolonização inspirado no modelo inglês do pós-guerra.
Para surpresa geral, o governo de Marcelo Caetano autorizou a publicação do livro (algo impensável com Salazar), com o apoio do general Costa Gomes, na ocasião chefe do Estado-Maior das Forças Armadas.
Spínola sustentava uma solução equilibrada, a meio caminho entre a independência completa sustentada pelo Partido Socialista e pelo Partido Comunista e a integração num todo homogéneo apoiada por alguns sectores mais liberais do próprio regime.
O que na altura não se sabia era que o referido livro constituía a ponta do icebergue e que, de uma forma sub-reptícia, vários sectores intermédios das formas armadas, estavam a preparar o aparecimento do Movimento das Forças Armadas.
As guerras prolongadas em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, tinham atolado Portugal numa crise profunda.
Um país com dez milhões de habitantes, bastante atrasado relativamente aos restantes países europeus, flagelado por uma forte emigração, nomeadamente de muitos jovens que fugiam do serviço militar e da miséria, não podia continuar a manter indefinidamente um exército de milhares de homens em vários teatros de guerra .
Nessa época, o serviço militar obrigatório durava quatro anos, dos quais pelo menos dois, deveriam ser efectuados em território ultramarino.
Embora tivesse havido uma autorização por parte do regime, havia sempre uma ameaça latente do livro poder ser apreendido pela PIDE, motivo pelo qual uma das cópias seguiu para Paris, a fim de ser traduzido e editado, no caso de interdição em Portugal.
Na manhã do dia 22 de Fevereiro, o livro foi colocado à venda, tendo os cinquenta mil exemplares da primeira edição (um número absolutamente extraordinário para os padrões editoriais da época), desaparecido num ápice das livrarias.
À hora de almoço do livro já tinha esgotado em Lisboa. O livro “Portugal e o Futuro” vendeu um total de cerca 230 mil exemplares.
Analisando todo este contexto à distância de 50 anos, afigura-se-me particularmente óbvio que este livro ficou para a História, pela tremenda importância e impacto político que teve, pelo interesse que despertou, pelo número de exemplares vendidos e pelas consequências que daí advieram.
Eu já o li e reli por diversas vezes; é, claramente, uma excelente publicação.
Exaustiva, pormenorizada, reflexiva., incontornável, premonitória.
Recomendo-a vivamente.
A publicação do livro “Portugal e o Futuro” foi claramente um desafio e um confronto directo ao regime do Estado Novo por parte de António de Spínola.
Dois meses depois, a 25 de Abril de 1974, o regime caiu.
António de Spínola viria a ser o primeiro presidente da República, logo a seguir ao 25 de Abril.