Coordenador do livro que assinala os 170 do jornal O Setubalense apresenta a obra como um instrumento de consulta e também de alavanca a novas investigações
Agradeço ao Sr. Presidente da Câmara, Dr. André Martins, por nos receber nesta casa.
Interpreto a sua presença e o seu apoio como o reconhecimento da importância que a CMS tem dado ao estudo da História Local.
Há cinco anos, o Dr. Francisco Rito lançou-me o desafio de coordenar o livro “Setúbal no Centro do Mundo” para comemorar os 165 anos de existência d’O SETUBALENSE, o jornal mais antigo de Portugal Continental e mesmo um dos mais antigos do mundo.
Desafio que aceitei com entusiasmo e empenho. Desta vez fui eu a propor-lhe empreender um novo projecto editorial.
Considerei que O SETUBALENSE seria a instituição certa para editar o Dicionário de História de Setúbal. Não preciso dizer porquê. Há quase dois séculos que este jornal contribui para a construção e o aprofundamento da identidade local. O Dr. Francisco Rito entrou incondicionalmente nesta aventura.
E no último ano e meio temos trabalhado em conjunto, vencendo os obstáculos que foram aparecendo.
Muito obrigado, Francisco.
Agradeço, igualmente, ao Eng. Carlos Correia, Presidente do Conselho de Administração do Porto de Setúbal pelo apoio à edição deste livro. Esta pareceria é particularmente importante e revela a compreensão que teve da relação profunda entre o Rio Sado, o Porto e a cidade. De facto, não podemos fazer a História de Setúbal dissociada do Rio e do seu Porto.
Recordo, a propósito, uma frase célebre de Heródoto, historiador grego, considerado o pai da História, que ao estudar a Civilização Egípcia sublinhava que “O Egito é uma dádiva do Nilo”.
Do mesmo modo podemos dizer que Setúbal é uma dádiva do Rio Sado. Não é errado dizer que Setúbal existe graças ao seu rio, o Rio Sado.
O DHS era um projeto que acarinhava há muito tempo e é o resultado de vários anos de estudo dedicado à
cidade de Setúbal.
Mas um Dicionário com estas características nunca poderia ser o resultado apenas de um trabalho individual.
O DHS pôde contar com a competência e o saber de dezenas investigadores e investigadoras.
Dentro do leque das colaborações, todas elas valiosas, destaco as dos professores e professoras de várias universidades e instituições do ensino superior, de professores do ensino básico e secundário, de
jornalistas, escritores e investigadores da História da cidade, numa grande diversidade de formações académicas, científicas e profissionais.
Não poderei, neste espaço, referir-me a todos e a todas.
Mas queria, sobretudo, sublinhar o facto de termos conseguido, aqui, juntar várias gerações de investigadores, prova provada que as gerações não se excluem antes se completam.
Temos colaborações daqueles que há quatro ou cinco décadas inovaram no estudo da arqueologia como Carlos Tavares da Silva e Joaquina Soares, mas também de outros, como Carlos Mouro, António Cunha Bento, João Reis Ribeiro, Laurinda Abreu, o Paulo Guimarães, o Horácio Pena, o António Chitas que dedicaram grande parte do seu labor ao estudo da História da cidade;
Temos, ainda, os contributos de uma nova geração que tem traçado novos caminhos para o estudo da História Local.
Quero, de igual modo, evidenciar que esta nova geração integra já uma longa lista de jovens que alia uma sólida formação cientíca ao entusiasmo pelo estudo e divulgação da História Local.
Correndo o risco de ser injusto e omitir alguns nomes referirei Ana Alcântara, o Diogo Ferreira, a Maria João Pereira Coutinho, o João Santos, a Inês Gato Pinho, o Pedro Fernandes, o José Luís Neto e a Vanessa Amorim, o João Francisco Pereira, o João Santana da Silva, a Helena de Sousa Freitas e o Luís Teixeira. Todos eles já concluíram os seus doutoramentos, ou estão a concluí-los, sendo que grande parte das suas investigações integram diversos ângulos da História de Setúbal, da História de arte à História social e política, passando pela História do desporto, do património edificado à História religiosa.
Durante muito tempo a academia desvalorizou a História Local e secundarizou-a, mesmo, como objeto de estudo. Esta nova geração de investigadores é também responsável por virar uma outra página no estudo da História.
A todas e a todos agradeço a vossa generosa e empenhada colaboração.
Os meus agradecimentos vão, ainda, para a Luísa Solla que reviu todo este trabalho com a argúcia e competência que lhe são reconhecidas. Vão, do mesmo modo, para o Fernando Pinho, autor da capa de que muito gosto.
Agradeço, igualmente, ao Dr. Pedro Tadeu por ter aceitado, prontamente, fazer a apresentação deste livro. Fê-lo da forma distinta que todos conhecemos e também reconhecemos.
Não posso deixar de agradecer à Alice não só pelas entradas que elaborou, mas também por ser sempre a primeira crítica e cúmplice em todos os trabalhos em que me vou envolvendo.
Continua a ser muito bom poder estar e contar com ela.
Finalmente registo, com grande gratidão, a comparência de todos os amigos e amigas aqui presentes. A todas e a todos o meu muito obrigado.
Em 1992 fui convidado pelo diretor do Museu da cidade, o dr. Fernando António, para fazer o Prefácio ao livro fac-similado “Memória sobre a História e Administração do Município de Setúbal”, que tinha sido editado, pela primeira vez, em 1877.
Nesse prefácio recordava o livro “Cem Anos de Solidão” de Gabriel Garcia Márquez.
Nesse livro, o autor fala-nos de uma comunidade que por doenças e feitiços vários, perdeu progressivamente a memória.
Essa perda de memória atingiu tal dimensão, que as pessoas tinham que colocar letreiros sobre os objetos para se lembrarem do seu nome…
Mas, dramaticamente, nos dias seguintes, já não se lembravam de como é que se lia…
E estáticos, ficavam olhando as coisas com letreiros sem perceberem do que se tratava…
Esta estranha história de Garcia Marquéz levanta-nos a seguinte questão:
O que seria de nós, se perdêssemos essa faculdade fundamental que permite ao ser humano trazer ao presente o conteúdo e as vivências do passado?
O que seria de cada um de nós se ao sairmos desta sala perdêssemos a memória?
Se ao irmos para a rua não soubéssemos para onde nos deveríamos dirigir?
Se perdêssemos as referências da nossa casa, da nossa família, dos nossos amigos…
Se não soubéssemos sequer quem éramos, o que amávamos ou detestávamos, que sonhos tínhamos, por que experiências já tínhamos passado…
Todos sabemos o que é que nos aconteceria – seria uma existência completamente destroçada…
Com as comunidades humanas passa-se rigorosamente a mesma coisa…
Uma comunidade, um povo que não conhece o seu passado é de facto como uma pessoa que tivesse perdido a memória.
A memória, ao nível das comunidades, ao nível dos povos, das populações locais, a memória é uma espécie de herança que nos foi deixada pelos nossos pais e pelos nossos avós.
Herança a que só um louco renunciaria.
Enquanto comunidade que vivemos neste espaço que é Setúbal, o nosso património cultural é a quota que nos cabe duma herança enorme que é o nosso passado.
E é na fruição desta herança que nos coube, que encontramos a nossa identidade. A nossa forma de ser e de estar…
Essa é também a responsabilidade da Escola, das autarquias, das associações cívicas, da imprensa, dos agentes culturais, dos Museus… mas também de cada um de nós.
A ignorância daquilo que fomos integra nos tempos que correm uma amnésia planificada.
Na ambiência global e planetária sopram os ventos de um esquecimento enlouquecido e programado.
Viver em Setúbal e não saber que este espaço já foi uma imponente cidade do império romano é absurdo; viver em Setúbal e desconhecer que a República aqui chegou mais cedo, um dia antes de ser imposta em Lisboa pela revolução republicana, é indesculpável; viver em Setúbal e ignorar a rebeldia e a luta permanente da cida-de contra o fascismo é preocupante.
Como foi referido no prefácio, este dicionário pretende ser mais que um conjunto de palavras organizadas com a precisão da ordem alfabética.
Um dicionário de História local não é um armazém de dados onde em gavetas se introduzem factos, personagens e outras memórias.
Este dicionário pretende ser mais.
Pretende a sistematização dos saberes avulsos, assumindo-se como um instrumento de consulta e também de alavanca a novas investigações.
Sem falsas modéstias, temos a certeza da sua utilidade nas escolas setubalenses; de igual modo, entendemos que o grande público encontrará nesta obra o prazer da descoberta de temas sobre os quais nada sabia.
Abrir as portas ao nosso passado coletivo e partilhá-lo com toda a cidade é o objetivo primeiro desta obra.
Todos nós somos a cidade que habitamos.
Ela pertence não só aos que aqui nasceram, mas também aos que aqui chegaram e nela inscreveram a sua vida.
Àqueles que cresceram na cidade e
com quem a cidade cresceu.
Numa altura em que se diaboliza a emigração, é bom lembrar que Setúbal foi sempre conhecida pela forma generosa com que acolheu os que aqui chegaram estendendo-lhe as mãos da inclusão.
A identidade não cai do céu. Constrói-se todos os dias. A identidade é antes de mais a consciência de si, do laço de pertença que cada um de nós tem com o território simbólico que lhe é chão.
A apropriação da memória coletiva que a História local proporciona favorece essa identidade que nada tem a ver com uma perspetiva chauvinista, paroquial e fechada.
*Intervenção proferida no lançamento da obra, no dia 19 de Julho de 2025, nos Paços do Concelho de Setúbal