Em funcionamento desde 1969 continua a ser a infra-estrutura mais marcante no concelho com impacto na economia
No extremo sudoeste alentejano, entre vales profundos e planícies suaves, ergue-se uma das obras de engenharia hidráulica mais ambiciosas do século XX em Portugal. A Barragem de Santa Clara, construída no leito do rio Mira e oficialmente inaugurada em Maio de 1969, não é apenas uma impressionante estrutura de contenção de águas: é, sobretudo, um símbolo de transformação. Para Odemira, foi o ponto de viragem que definiu um novo rumo económico, social e até cultural.
Antes da barragem, o concelho vivia, em larga medida, à mercê da chuva. A agricultura de sequeiro dominava a paisagem e os rendimentos das famílias eram limitados e imprevisíveis. Com a criação de uma das maiores albufeiras da Europa à época — com cerca de 485 milhões de metros cúbicos de capacidade — tudo mudou. A água passou a estar disponível o ano inteiro, permitindo a diversificação de culturas e o avanço de uma agricultura moderna baseada no regadio.
A barragem faz parte do Plano de Rega do Alentejo, uma estratégia traçada pelo Estado Novo com o objectivo de dinamizar o interior do País. Ainda que tenha sido inicialmente projectada com objectivos agrícolas, o impacto do empreendimento ultrapassou em muito esse domínio. A obra deu origem a novas formas de vida em redor da albufeira: surgiram pequenas unidades turísticas, zonas balneares fluviais, actividades recreativas e, sobretudo, novas comunidades rurais com melhores condições de vida.
Centenas de famílias sentiram o impacto directo na produtividade dos seus terrenos, na diversificação de culturas e na estabilidade financeira.
A engenharia da barragem também merece destaque: com 83 metros de altura e 1100 metros de coroamento, a estrutura em terra compactada foi, à data, a maior do género no país. A sua construção envolveu centenas de trabalhadores, maquinaria pesada importada e um esforço logístico sem precedentes na região.
Além da agricultura, a barragem é também um ponto de captação de água para consumo humano e um recurso de produção de energia hidroeléctrica. O abastecimento às populações da região sudoeste e parte do Algarve deve-se, em parte, à estabilidade fornecida por Santa Clara.
Ao longo das décadas, a barragem passou a integrar também o imaginário turístico do concelho. A sua albufeira, rodeada por montado e vegetação mediterrânica, tornou-se um refúgio para visitantes em busca de sossego e natureza. A prática de pesca desportiva, passeios de barco, canoagem e observação de aves são hoje actividades comuns, em contraste com o isolamento que caracterizava a zona antes da sua construção.
Apesar das vantagens evidentes, a construção da barragem também implicou sacrifícios. Aldeias inteiras foram realojadas e parte da antiga rede viária submersa. A mudança foi sentida como uma ruptura por alguns moradores mais antigos, cujas casas e memórias ficaram debaixo de água. Ainda assim, o balanço que a maioria da população faz é claramente positivo.
A nível ambiental, também se levantam questões. O impacto nos ecossistemas ribeirinhos, as alterações na dinâmica do rio Mira e a pressão turística sazonal requerem uma gestão cada vez mais consciente e equilibrada da albufeira. A recente aposta em projetos de sustentabilidade, como a melhoria da qualidade da água e a regulação do uso balnear, mostram que os desafios da barragem não terminaram com a sua construção.
Em 2024, mais de meio século depois da sua inauguração, a Barragem de Santa Clara continua a ser o eixo central de desenvolvimento do concelho. Se hoje Odemira se destaca pela qualidade agrícola, pela diversidade paisagística e por atractivos turísticos sustentáveis, muito se deve à presença silenciosa, mas determinante deste colosso de terra e água.
Mais do que um legado do passado, Santa Clara é uma ponte viva para o futuro do sudoeste alentejano.