Era o Tejo que “levava e trazia” centenas de trabalhadores, num movimento constante que funcionou como motor de crescimento e transformação do concelho
A Moita nasceu e cresceu com os olhos postos no Tejo. Ao longo dos últimos 170 anos, o concelho moldou-se à beira-rio, onde o vaivém das embarcações e o pulsar das fábricas ditavam o ritmo da vida quotidiana. Mais do que um ponto no mapa da margem sul, a Moita tornou-se um dos emblemas do operariado português, com raízes vincadas na industrialização, nos transportes fluviais e numa cultura profundamente marcada pela luta e pela organização colectiva.
Desde meados do século XIX, a vila ganhou relevância como nó estratégico na circulação de pessoas e mercadorias. O seu cais fluvial tornou-se essencial para o abastecimento da capital e para o escoamento de produtos agrícolas, pescado, carvão e materiais de construção. Varinos, fragatas e botes cruzavam diariamente o estuário do Tejo, transportando não só bens mas também centenas de trabalhadores que rumavam, manhã cedo, a Lisboa ou ao Barreiro. Era o rio que os “levava”, era o rio que os “trazia” – e esse movimento constante era também motor de crescimento e de transformação.
À boleia desse dinamismo, a Moita conheceu um processo de urbanização acelerado. A fixação de operários junto às zonas ribeirinhas levou à formação de bairros populares, com habitação modesta mas marcada por uma intensa vida comunitária. Ao mesmo tempo, começaram a surgir pequenas unidades industriais: serralharias, moagens, estaleiros, fábricas de cortiça e oficinas artesanais. A proximidade com o Barreiro, onde a CUF impunha um novo ritmo à industrialização, reforçava esta dinâmica. Muitos moitenses ali encontravam emprego, fazendo da Moita não apenas um espaço de residência, mas também uma retaguarda operária fundamental na estrutura produtiva da região.
Terra de resistência
Mas, a Moita não era apenas terra de trabalho, era também terra de organização e resistência. Nas primeiras décadas do século XX, a crescente identidade operária gerou uma forte cultura associativa. Clubes recreativos, cooperativas de consumo, grupos culturais e colectividades multiplicaram-se, dando corpo a um tecido social onde a solidariedade e o espírito progressista ganhavam força.
Essa teia associativa revelou-se essencial nos tempos mais sombrios: durante a ditadura do Estado Novo, a Moita tornou-se um dos bastiões da oposição no sul do Tejo. O movimento sindical tinha ali uma presença significativa, a par do Partido Comunista Português, que encontrava no concelho um terreno fértil para a resistência clandestina.
Com a Revolução de Abril, a Moita passou das palavras à acção. A herança de luta e participação cívica traduziu-se num envolvimento activo na construção da democracia local. O concelho afirmou-se como uma comunidade com consciência política, memória histórica e sentido de pertença. O poder autárquico – gerido sempre pelo PCP até às últimas eleições de 2021, que o PS venceu – passou a espelhar essa identidade colectiva, traduzindo-a em políticas públicas que procuravam responder às necessidades populares.
O que mudou e o que restou
Hoje, muito mudou. As embarcações tradicionais, como os varinos, já não têm o peso económico de outrora; muitas das antigas fábricas fecharam portas; o tecido laboral transformou-se. Mas a memória persiste. As Festas em Honra de Nossa Senhora da Boa Viagem mantêm viva a ligação simbólica e afectiva ao rio, enquanto colectividades centenárias e bairros de traçado operário continuam a contar, nas paredes e nos rostos, a história de uma Moita que foi – e em parte ainda é – terra de trabalhadores, de causas e de comunidade.
Mais do que um capítulo na história da margem sul, o percurso da Moita é um exemplo crasso de como o território, a economia e a luta social se entrelaçam para moldar a identidade de um povo. Uma identidade construída com o suor do trabalho, com a força da organização e com a corrente constante de um rio que nunca deixou de correr.