O médico-jornalista que transformou a escrita em voz da liberdade

O médico-jornalista que transformou a escrita em voz da liberdade

O médico-jornalista que transformou a escrita em voz da liberdade

Clínico com carreira feita e família nascida e criada em Setúbal, aos 97 anos, com mais de 900 artigos publicados n’O SETUBALENSE, prepara a publicação de mais um livro, para homenagear a liberdade.

Médico “por acaso”, como o próprio se intitula, tem 97 anos e 40 deles foram privados dos sabores da liberdade, Mário Moura é uma figura da cidade, conhecido pela longa carreira na medicina, que exerceu sempre em Setúbal, e pela sua ligação ao cristianismo. Descobriu a fé já na idade adulta e, depois disso, manteve-se sempre próximo, embora sem perder o sentido critico, da Igreja. Foi director do jornal da Diocese de Setúbal, o ‘Notícias de Setúbal’, entre 1969 e 1975.

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Conimbricense de raiz, nasceu, cresceu e estudou na cidade de Coimbra. Foi nesta província da Beira Litoral, durante a formação em Medicina, que Mário descobriu o “bichinho” do jornalismo, onde começou por escrever alguns artigos apenas com o intuito de propagar aquilo que aprendia.

Após a conclusão dos estudos, pouco tardou para “apanhar o comboio com o primo Rui” e vir para o Hospital do Espírito Santo, em Setúbal, trabalhar. O tempo passou, aqui ficou, casou e constituiu família. Viúvo, ainda mostra com afinco o amor que sente pela sua parceira.

Actualmente, mora numa rua calma de Vanicelos, com uma das suas filhas, Ana Moura. Nesta entrevista, o médico, que também foi jornalista, recorda os tempos amargos da Ditadura do Estado Novo, que atenua com o sabor doce das recordações e das histórias das pessoas que por ele passaram.

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Como é que um médico entra no jornalismo?

Fui jornalista logo desde os anos da faculdade porque fui director da Associação Académica de Coimbra, que tinha um jornal, a ‘Via Latina’, que estava morto. A minha primeira actividade como jornalista foi reviver o ‘Via Latina’.

Gosto muito de expandir aquilo que aprendo. Nós não podemos reservar aquilo que estudamos e aprendemos, não podemos nem devemos reservar para nós próprios. A minha intenção como jornalista era mais de propagar aquilo que aprendia e lia, nesta altura, não era tanto para informar. É uma obrigação de cada cidadão ir conhecendo o processo do mundo em que vivemos.

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O que recorda do 25 de Abril?

Pouco tempo depois de cá estar (em Setúbal) foi-me entregue a direcção do jornal ‘Notícias de Setúbal’ e, como tal, sobre as inclemências do censor, todos os jornais tinham de ser desenhados e levados ao mesmo.

Eram lidos e depois cortavam aquilo que achavam que não devia lá estar. Era uma camisa de forças. Quando foi o 25 de Abril, tendo vivido tantos anos sem liberdade, e com a mania de ser jornalista, é evidente que foi uma explosão de alegria e liberdade. Verdadeiramente, nem foi o 25 de Abril e, sim, o 1º de Maio, Dia do Trabalhador, que me trouxe isso.

Está a escrever um livro sobre a Revolução dos Cravos…

Eu tinha de escrever alguma coisa sobre a Liberdade e o 25 de Abril, portanto, juntei todos os artigos que escrevi e fiz um livro com isso. Nasci já com a ditadura e, portanto, escrevi parte da minha vida sem liberdade, só a vivi aos 40 anos.

O livro fala sobre isso, ainda antes disso, fiz uma reflexão filosófica sobre o que é a liberdade.

Já tem data prevista para o lançamento do livro?

Ainda não tenho data prevista, será mais para o final do ano. Lá para o último trimestre.

Qual foi a sua intenção ao escrever este livro?

O livro é constituído por todos os trechos de vários jornais sobre o 25 de Abril. A Revolução foi um grito de esperança. Tenho pena de não ter quase nada guardado do tempo anterior, mas não sabia que este movimento iria ter tanto impacto, nem sequer sonhei que fosse acontecer. Vivi coagido pela censura, tanto em Coimbra como em Setúbal, quando assim é ninguém sonha com o novo, mantemo-nos no mesmo, no igual.

Eu vivi 40 anos sem poder escrever o que queria, mesmo que fosse sobre a igreja. Com este livro eu pretendo comparar os anos de ditadura com os actuais, já fizemos 50 anos.

Por que razão decidiu escrever agora o livro?

Decidi combinar o gosto pela escrita com o prazer da liberdade. Há vários prazeres na vida e a liberdade é um deles [expressou em gargalhadas].

Chegou a esta altura e eu pensei: ‘O 25 de Abril faz 50 anos, é o momento ideal para escrever qualquer coisa, de forma a premiar os Capitães de Abril”. Isto tudo porque cresci sem a liberdade, ninguém merece ser privado de tal coisa. Esta foi a maneira mais digna que eu arranjei para celebrar o 25 de Abril de 1974.

Nas suas reflexões filosóficas sobre a liberdade, refere a tecnologia. Pode elaborar mais essa questão?

Muitas pessoas não sabem o que é viver sem liberdade, tomam na como garantida.

Hoje, está pela rua da amargura, não há, verdadeiramente, liberdade. Há falta de leitura, principalmente pelos mais novos, o que resulta numa ausência de bagagem de pensamento. A leitura é essencial para o pensamento crítico, mas os jovens preferem pegar no telemóvel e apenas confiar numa só opinião.

Nós não temos a certeza de que vivemos em liberdade porque vivemos condicionados pela tecnologia. É a ditadura da máquina.

O mundo está voltado para o capital e consequente para a máquina. O trabalho das pessoas foi pormenorizado em dinheiro.

Quem tem mais dinheiro é quem manda mais. Veja-se o exemplo dos Estados Unidos. A condição da tecnologia tornou o nosso trabalho inválido porque sai sempre mais barato pedir a uma máquina para fazer, não somente em esforço laboral, como em pensamento.

Enquanto jornalista, qual foi o maior impacto que sentiu?

Foi a censura. Não poder dizer aquilo que queremos é tirar um poder, ainda hoje, em alguns lugares do mundo se vive assim.

Não é o correcto. Nesta altura (pré-25 de Abril), a PIDE escrevia relatórios sobre nós, quem eramos, de onde vínhamos, os nossos amigos, a nossa rotina… Eu tive uma sombra que escrevia cartas sobre mim e calhou ser próximo ao Zeca Afonso. Ele (o agente da PIDE) escreveu sobre isso. Um amigo, deu-me acesso a essas cartas e lá dizia “Amigo de X mas sem precedentes” [risos]. Para eles, nem amigos se poderia ter.

Conseguiu identificar algum padrão na censura?

Em determinada altura converti me ao catolicismo, e houve um Concílio Ecuménico Vaticano II, que durou três anos, onde toda a igreja foi renovada com documentos preciosos. Eu decidi escrever e contar isso para o ‘Notícias de Setúbal’, que era um órgão de comunicação social que pertencia à igreja. Mas, os padres que lá estavam, achavam que o jornal dava prejuízo e, por isso, meteram fim.

Acabou-se assim o meu jornalismo. (Ainda neste tempo) a censura cortava tudo o que era relacionado a este assunto. Tudo o que eles desconfiavam, não passava, até tentei escrever com segundos sentidos, mas cortavam sempre. O padrão era a desconfiança.

Quando e como sentiu a primeira vez a censura?

Estava na faculdade, juntamente com uns colegas, e tínhamos descoberto que um professor nosso tinha todo o equipamento necessário para construirmos uma rádio (na faculdade).

Lá fomos nós massacrar o reitor e tanto massacramos que ele nos deixou, tudo com a autorização até da PIDE. No primeiro dia de emissão, só transmitimos música, no segundo dia, música e duas ou três notícias, sem sentido nenhum, apenas coisas da faculdade. No terceiro e último dia, a porta estava selada por intervenção da PIDE. Era isto que acontecia.

O que sentia quando os seus escritos eram censurados pelo Capitão Almeida?

Fui tantas vezes ter com ele, porque ele era o censor aqui de Setúbal, com todos os jornais, ia eu e um padre, o Padre Zacarias, ninguém se maltratava. Ele fazia a sua função e eu a minha. Quando ele começou a cortar os meus textos sobre o Concílio, fiquei um bocado chateado, porque aquilo não era sobre política. Cheguei a ir a Lisboa para pedir satisfações sobre alguns textos, mas eles é que tinham sempre a razão.

Quais os aspectos específicos do regime do Estado Novo a que se opôs?

O Estado Novo era um regime autoritário, se ainda hoje existisse não podíamos ter este aparelho (aponta para o telemóvel), seria muito moderno. Os homens e as mulheres não tinham liberdade para nada e, quem a queria, era preso. Tive muitos amigos e colegas a serem presos, Álvaro Cunhal, dizia assumidamente que era do PCP, ou o Mário Soares, também foi preso político.

(Hoje) há de tudo, lésbicas, gays, e são aceites, não há motivo para não serem respeitados. Aliás, a ciência mostra que é algo normal, temos cromossomas e é isso que nos distingue. Eu, como médico, sabia disto, mas não podia dizer.

Acredita que a comunicação social desempenhou um papel na transição para a democracia em Portugal? Em que medida?

 A comunicação social, até à conquista da liberdade, a censura não deixava sair nada, ‡cava apenas aquilo que o ditador considerava que as pessoas deviam de saber e deviam de fazer. Agora não. Na liberdade, é evidente que os jornais, os canais de informação são meios de propagação das boas ideias e boas orientações. Só que muitos deles não seguem esse caminho. São dominados também por interesses. Muitos deles, por exemplo, do ponto de vista económico.

Dado o contexto político actual, qual a importância da comunicação social?

É evidente que ter nas mãos um órgão de informação é uma possibilidade, de primeiro defender determinado tipo de verdades, e, em segundo, propagar coisas com um mínimo de conhecimentos para o bem comum. Aquilo que dignifica o ser humano, é o seu trabalho. E o trabalho foi metido na gaveta.

O capital sobrepôs-se. Os países ricos é que dominam. Os migrantes fogem porquê? O centro de África está dominado por grupos armados que são quase todos dependentes da Rússia e da China. Existiu um homem que teve o atrevimento de manifestar a crítica à conduta de Putin e teve um acidente de avião. Tudo porque foi contra o ditador Putin.

Que lições acredita que podem ser aprendidas com sua experiência para o contexto político e social actual?

O mundo é complicado. O trabalho é política. Mas isto é ditado pelo registo que delimita a pessoa que é o trabalho.

Não é o capital. E o que gera o capital é o meu trabalho. Quando nós produzimos e vendemos vai rendendo. Há quem tenha possibilidade de ter muitas pessoas a trabalhar, e juntar o lucro das coisas e acabar por ser o capital a dominar o trabalho.

E isso vê-se nos nossos partidos políticos. A gente não vê as pessoas nos seus debates a falar daquilo que é realmente importante.

Fala-se da educação e da habitação. Mas o problema em Portugal não é o ordenado mínimo, é o ordenado médio que não chega para um casal viver. A gente, por natureza casa, e isso mandou o nosso criador. Criar e apaixonar.

Portanto, o capital dominou o mundo. E pior do que isso, o nosso trabalho procura não o bem-estar comum, mas procura o prazer. E alterando as regras da natureza, estamos realmente num ponto muito crítico.

Para si, o que é a liberdade?

Eu acho que uma pessoa não pode ser indiferente à existência dos outros e à existência do mal. Para mim a liberdade é ter a possibilidade ainda de comunicar aos outros o que é o bem-comum e como se deve proceder para que haja harmonia entre todos. É claro que neste momento a liberdade falta em quase todos os sítios porque embora, teoricamente, nos diplomas que orientam os governos, haja o direito à liberdade em muitos sítios, isso está só no papel.

Além de que nas informações, sobre as quais eu não tenho a certeza de que sejam ensinamentos que estejam na boa orientação. Portanto, neste momento, uma pessoa, para ter a certeza de que pratica a verdade, é só fazer aquilo que sai do seu próprio coração. No fundo, liberdade e amor estão juntos.

*Estudante de Jornalismo da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Setúbal (ESE•IPS)

Leonor Bártolo*

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