Jovem setubalense que tem investigado e ajudado a perceber o que fez o Estado Novo em Setúbal, avisa que a democracia está em perigo
Doutorado em História, com a tese sobre ‘Setúbal entre a República do pós-guerra e a Ditadura Militar’ – que acabou por ser primeiro trabalho sobre História de Setúbal a receber um prémio nacional (menção honrosa do Prémio Mário Soares-, é o jovem historiador sadino com mais obra publicada. Aos 32 anos de idade já conta com uma dezena de livros. Alguns especificamente sobre o período da ditadura.
Diogo Ferreira ajuda-nos a perceber o significado da Revolução para os mais jovens.
O que o motivou a seguir a carreira de historiador?
A história foi sempre uma coisa que esteve dentro de mim. Recordo-me de ser muito miúdo e de ter sempre um fascínio muito grande pelo passado. Na antiga casa dos meus pais havia uma vista bastante privilegiada para o castelo de Palmela.
É a memória mais antiga que tenho, de imaginar histórias sobre o que aconteceria ali. Quando tinha 7 anos pedi, como prenda de aniversário, ir àquele castelo. O meu irmão mais velho levou-me lá. Na escola, a disciplina que rapidamente se tornou preferida foi História, até que chegou o momento, no final do Secundário, de decidir o curso superior. Na altura houve muita pressão, externa à minha família, num ambiente em que eu me envolvia, com professores e colegas, estávamos a passar pela terceira crise do capitalismo, de 2008/2009, e, então, não fui para História.
E obtive 19,5 valores no Exame Nacional. Fiquei com 20 na pauta do exame, o que não acontecia na escola Dom Manuel Martins há uns 30 anos.
A professora, que estava a reformar-se, disse que eu fui o melhor aluno da carreira dela. Mas fui para Direito e entrei até com uma média muito alta, com 18,9 valores. Estive lá duas semanas, horríveis, fartei-me de chorar, porque sempre fui um aluno estudioso e, de repente, abro um livro e não gosto do que estou a ler.
Sentia-me mal e, felizmente, na terceira fase, o meu pai, que já não está entre nós, disse-me: “Tu tens de ir para aquilo de que gostas”. E então fui para a História, tirei a licenciatura na FCSH, e, no final do curso, comecei a ter um interesse particular pela história de Setúbal.
O contacto com os livros dos professores Alberico [Afonso Costa] e Maria Conceição Quintas foi quase um encontro comigo próprio e foi uma descoberta de uma paixão imensa. Sem dúvida que esta carreira foi uma escolha. Trabalho com grande empenho, amor e carinho para dar à cidade conhecimento novo, feito nestes sítios (arquivo), consultando milhares de documentos, para recuperar este passado oculto e transmiti-lo às pessoas.
E qual é a parte negativa desta opção pela História?
É uma profissão muito difícil em termos financeiros. Já o sabia, quando comecei o curso estava entre os dez piores do ponto de vista económico. Mas acho que aquilo que me dá não se compra, e isso é muito bom. Agora, com uma filha com três meses, ser precário do Estado, nunca ter tido um contrato de trabalho digno daquilo que é a minha formação intelectual, é um bocadinho revoltante. Mas creio que a vida ainda me pode sorrir. Já escrevi 10 livros, sou uma pessoa relativamente conhecida na comunidade por aquilo que faço, já ganhei um ‘Golfinho d’Ouro’, mas falta o outro lado, o financeiro.
Participou nas comemorações dos 50 Anos do 25 Abril promovidas pela Câmara de Setúbal, como membro da Comissão de Honra e como autor de alguns trabalhos de investigação. O que é que fez aceitar o convite e o que esperava transmitir?
Percebi que o convite que me foi endereçado por causa da minha profissão, fiquei muito satisfeito e orgulhoso por integrar uma Comissão de Honra relativa à celebração da mais bonita revolução europeia, em valores, espiritualmente falando. Na Comissão de Honra, eu tenho um papel externo ao município, como historiador, mas, por outro lado, tenha uma acção diária dentro do município, como colaborador no Museu do Trabalho, através do Gabinete de Promoção e Divulgação do Património Histórico e Cultural. Portanto, dá para separar.
Tentei contribuir para o estudo e divulgação de questões associadas a presos políticos da região, publicar alguns textos de homenagem a homens e mulheres que fizeram parte da resistência antifascista no plano local. Por exemplo, a exposição das mulheres presas pela PIDE, que está na Avenida Luísa Todi, perto do Mercado do Livramento, que fiz em colaboração com a Raquel Barata Martins, colega antropóloga.
E ainda fizemos um documentário, com entrevistas a mulheres e descendentes dessas presas políticas. Foi, no fundo, dar um rosto a mulheres, que, numa sociedade patriarcal, são marginalizadas, inclusive, no universo da resistência, como se só os homens é que tivessem resistido, quando não é verdade. Ficaram também as duas brochuras que publiquei, em Fevereiro, porque, a 17 desse mês, fez 90 anos da morte do jovem Fernando Pedro Gil, assassinado pela polícia, e completavam-se 130 anos do nascimento de José Manuel Alves dos Reis, que, descobri, foi o único setubalense preso no Tarrafal, pelo Estado Novo.
Esteve lá seis anos, a sofrer horrivelmente, acabou por morrer nesse campo de concentração e agora, felizmente, já tem o nome de uma rua na nossa cidade. No ano passado criei, também, um roteiro inédito, que se chama Caminhos para a Liberdade, que são 25 pontos da cidade relacionados com a luta pela liberdade. No fundo, tentei, dentro das minhas possibilidades, ajudar a dinamizar as comemorações da revolução.
Qual é a importância de dar a conhecer as vítimas da opressão?
Tenho uma certa paixão, no sentido de querer procurar as suas histórias, para as trazer para os mais jovens, e, mais importante, também para contrariar a ideia de que o Fascismo não existiu. Contar estas histórias é uma maneira de mostrar às pessoas, concretamente, com dados científicos, o que aconteceu.
Acho que conhecer a História nunca foi tão necessário como agora.
Cinquenta anos após a Revolução, estamos a atravessar uma fase crítica a nível das instituições da República. Observamos um retrocesso civilizacional, com o reaparecimento de grupos de extrema-direita, populistas e neofascistas. Um partido político que está a ganhar grande valorização, especialmente entre os mais jovens, tem um discurso alarmante. Este partido sugere uma visão onde ‘vamos jogar futebol uns com os outros, mas, no final, se eu ganhar, a bola fica para mim e já ninguém mais joga’. Em outras palavras, pretende jogar segundo as regras da democracia para, eventualmente, impor as suas próprias regras.
Portanto, é absolutamente crucial contar as histórias das vítimas da opressão, sejam mortos ou presos políticos. Essas narrativas são fundamentais para compreender e lembrar as injustiças sofridas.
Eu relato eventos factuais. Por exemplo, houve mulheres na polícia política que torturavam outras mulheres queimando os seus mamilos. Policiais políticos aplicavam torturas brutais aos homens, como dar chapadas nos testículos, esmurrar e pontapear. Muitas vezes alguns tinham de mentir, assumirem crimes que não praticaram, para pararem de torturados.
Não se pode branquear aquilo que existiu. E bastava uma morte. Se tivesse havido apenas uma morte, dizer que não existiu Fascismo, seria cuspir na memória dessa pessoa.
A geração mais velha ainda viveu o Fascismo. A nova geração, inclusive eu, já nasceu muito depois do 25 de Abril. Nascemos num contexto de direitos adquiridos, mas temos de ter consciência de que esses
direitos podem ser postos em causa a qualquer momento.
Na sua perspectiva, qual é o impacto da Revolução nas novas gerações e qual deveria ser?
Daqui a dez anos, a maior parte dos novos pais, já não viveram antes do 25 de Abril, como os nossos pais, por isso vai ser cada vez mais importante estudar a história da Revolução, no ensino, para que as pessoas percebam a dimensão daquilo que representa. O 25 de Abril já está a ser posto em causa. Basta ver os discursos na sessão solene do 25 de Abril. Uns não usam cravos, outros querem comemorar o 25 de Novembro em vez do 25 de Abril. Tudo isto são sinais que nos permitem perceber o desafio que está colocado às gerações futuras. Temos de ensinar, nas escolas, que não está tudo garantido e temos de proteger este bebé que é a Democracia. O Fascismo durou 48 anos e agora só levamos 50.
Acredita que a percepção do 25 de Abril mudou ao longo destes 50 anos?
Sem dúvida. Cada pessoa tem a sua percepção, mas há alguns, que não viveram esse tempo ou que
que têm interesses políticos, que querem transfigurar o 25 de Abril. Vivemos em liberdade, mas o que
está a acontecer é manipular o passado.
Qual é a importância de preservar os valores e as conquistas do 25 de Abril?
Acho que nunca foi tão importante como agora. Assistimos ao reaparecimento do sistema de direita, de populismos, da mentira, de fazer da mentira verdade, de propagandear ideias falsas, de manipular a opinião pública com interesses próprios e individuais, e principalmente, permitir que haja partidos políticos que querem fazer regimes novos. Como é possível em 2024 termos ainda se falar em racismo? Ou que haja pessoas que venham pôr em causa o direito ao aborto?
Há segmentos da sociedade que querem voltar atrás. Agora, a grande luta é conquistar a massa jovem.
O grande desafio para se manter o espírito de Abril é haver habitação e trabalho digno para os mais jovens. Vou repetir: Habitação para os mais jovens. Porque não há, neste momento, possibilidade dos jovens saírem de casa dos pais, fazerem uma vida própria, e terem empregos dignos. Lutar na rua, pelo fim da precariedade laboral. Nós não temos de ser obrigados a sair do nosso país. E depois, naturalmente, caminhar para o Ensino Superior gratuito.
Porque, como diz a canção do Sérgio Godinho, só há liberdade a sério quando há paz, pão, saúde e
educação.
Destaca algum elemento diferente no antes ou no pós revolução entre Setúbal e os restantes distritos? Ou seja, há algo que diferencia Setúbal?
Diria que aqui, a partir do 1.º de Maio de 74, a mobilização de massas, é uma coisa impressionante. As imagens que encontramos, as manifestações públicas da luta colectiva por direitos laborais, são uma coisa absolutamente impressionante. Acho que há uma energia muito própria das pessoas, que querem
se reunir, querem debater, querem pensar. Criaram clubes desportivos, associações culturais, espaços de
debate e de discussão. Há um antes e um depois do 25 de Abril que se traduz numa consciência essencial; a de que a vida de cada um tem valor.
Esta percepção, que parece tão minimalista, tem um significado brutal na vida individual de cada um e levou as pessoas a juntarem se, por saneamento básico, por abastecimento de água, por luz eléctrica. Acho que essa vontade de reunião, de votar conjuntamente por questões básicas, é uma coisa muito característica daqui. Esse sentido de esperança de que a Revolução ia trazer um mundo muito mais justo, mais harmonioso, mais bonito, mais igual, acho que isso é que é muito daqui. Foi um sonho bonito, mas falta ainda cumprir em Abril. Abril está em constante construção e temos de arregaçar as mangas, continuar a fazer cumprir Abril, lutando pelos direitos de todos.
- Estudante de Jornalismo da Escola Superior de Educação (ESE) do Instituto Politécnico de Setúbal (IPS)
DIOGO FERREIRA HISTORIADOR