Cátia Mazari Oliveira tem mostrado que a música e a democracia são indissociáveis. É nas letras que compõe e canta que grita por quem não tem voz, sobre temas que considera não estarem bem resolvidos, como a Educação. Nascida depois da Revolução, a Liberdade corre-lhe no sangue e nas pautas musicais
Cátia Oliveira, 40 anos, é conhecida pelo seu nome artístico, ‘A Garota Não’. Com raízes no Bairro 2 de Abril, em Setúbal, leva consigo e na sua música o lugar que a viu crescer. Expressa-se, essencialmente, através da escrita e da música e tem sido muitas vezes associada a José Afonso e José Mário Branco – duas inspirações que não esconde. Protesta através das suas letras sobre temas do antigamente e da actualidade, gritando sempre pela palavra Liberdade. Este ano, foi vencedora de vários prémios onde se destacam o ‘Golfinho D’Ouro’ como Figura do Ano do distrito na categoria de Cultura, atribuído por O SETUBALENSE, o Prémio José Afonso, o Prémio José da Ponte e, no ano passado, foi vencedora de um Globo de Ouro na categoria de Melhor Intérprete.
Em entrevista ao nosso jornal, fala da importância da música de intervenção, do papel das mulheres na actualidade, de Educação e de histórias sobre o 25 de Abril que foi guardando na memória.
De que forma a música pode ser um meio de intervenção importante para a manutenção da democracia?
A música, pela forma como nos toca e envolve, pode ser um braço importante da democracia no sentido em que provoca conversas transversais e colectivas. Um veículo para falarmos sobre o pessoal dos hospitais que faz três e quatro turnos seguidos e exaustos porque falta gente, sobre a professora que perde o direito a ter família de cada vez que é destacada para a outra ponta do País, dos jovens que terminam cursos e vão trabalhar a recibos verdes.
A música pode ser a deixa para falarmos sobre os homens e mulheres das fábricas que não dormem com as tendinites que têm no corpo, fruto dos anos de linha em movimentos repetidos a servir a multinacional. Para falarmos que uma mãe alcoólica deixa marcas, que um pai que bate, bate para sempre. Que o amor magoa e nos rebenta, mas que podemos falar disso com dignidade.
A música pode ser uma deixa para curarmos feridas e fazermos outros caminhos. Pode provocar partilhas, conversas, faz-nos menos solitários nas nossas inquietações. Reforça os laços de humanidade e é – também – nesses laços que pulsam as revoluções.
A memória de José Afonso perdura em si e em grande parte do seu trabalho musical. Porquê?
Em casa dos meus pais havia um respeito grande – e uma espécie de carinho silencioso – pelos cantautores, em particular pelo Zeca Afonso. Não tínhamos vinis, nem onde os ouvir, mas as músicas iam aparecendo no ouvido através da rádio ou da televisão, os meus pais cantarolavam aqui e ali e fui crescendo com isto. Não tínhamos conversas sobre quem eram os vampiros que comiam tudo, nem sobre o pintor que tinham assassinado, mas havia um sentido do que era certo ou errado. E o Zeca estava do lado bom.
Quando falamos em música de intervenção, o que vem automaticamente à cabeça são homens. Porquê? Estarão as mulheres cantautoras ‘escondidas’ ou perdura a ideia de que a ‘luta’ é para os homens?
Uma vez, numa entrevista, o José Mário Branco deu um ponto de vista que achei da maior inteligência e sensibilidade. Não sei de cor as palavras, mas o sentido era este: todos somos cantores de intervenção quando nos apresentamos publicamente e de microfone na mão. Todos estamos a intervir de alguma maneira no nosso tempo e lugar.
Chamar a uns quantos cantores de intervenção é pôr-lhes às costas uma responsabilidade que é de todos. Se pegarmos nesta ideia, que quanto a mim é justíssima, temos uma infinidade de gente a fazer música de intervenção, homens e mulheres, independentemente do género ou da estética musical. Cada um está a intervir a seu modo. E cada um escolhe que mensagem ou reflexão tem a deixar. E quão transformadora, divertida, estéril, comovente ou impactante pode ser a sua música.
O facto de haver menos nomes de mulheres nessa gaveta que alguém define como música de intervenção, deve-se ao mesmo fenómeno do qual resulta a nossa ignorância em relação ao nome e à obra de escritoras como Fiama Hasse Pais Brandão, Nita Clímaco, Maria Archer, Natália Correia ou Maria Teresa Horta, que tiveram os seus livros censurados durante o Estado Novo. Elas também estiveram na luta por um País de livre pensamento e expressão, por um País justo onde a mulher não fosse um ser subalterno, e nunca na escola estudei nenhum destes nomes – não obstante ter feito curso em Letras.
O fenómeno é conhecido, estudado e denunciado, mas nem por isso desaparecido em 2024. A mulher não tem um lugar de igualdade, e a visibilidade do seu pensamento e da sua obra é reflexo claro disto. Voltando à questão: Nem a luta tem género, nem as mulheres andam escondidas a fazer música. Elas estão aí a pulsar de vontade e com muitos manifestos em forma de canções. Só nestes últimos meses tivemos discos e singles de várias raparigas que estão a falar de coisas importantes.
Lembro-me, por exemplo, da Joana Alegre, Capicua, Joana Espadinha, da Bia Maria, Mila Dores, Rita Vian, Ana Lua Caiano [ver texto sobre música, de António Ramos, mais à frente, nesta edição]. Há muita gente a querer um tempo melhor para si e para os outros. A precisar que a vida seja mais compensadora.
As mulheres são também tema predominante nas letras que escreve – caso de “Por Nos Darem Tanto” de Ana Bacalhau. Depois de 50 anos da Revolução dos Cravos, onde também os militares homens foram protagonistas, onde é que as mulheres são protagonistas e que papel falta ocuparem?
Falta que nos possamos ocupar das nossas aspirações, que existam oportunidades e espaço para que cada um de nós possa em primeiro lugar ter aspirações! Que a vida seja um lugar de possibilidades, onde o berço, o género, a cor da pele ou o sotaque não nos limitem o passo. Falta ocuparmos a terra dos sonhos, do Jorge Palma.
“Liberdade, querida Liberdade / O nosso chão tem sonhos e vontade”, em Canção a Zé Mário Branco. Com uma conjuntura política em que a extrema-direita está cada vez mais em ascensão – e se fala num regresso ao passado – serão os sonhos e vontade suficientes para contrariar este crescimento?
Acredito que tenha de ser um conjunto mais alargado de substantivos bonitos: Tem de haver rasgo, honestidade e coragem para fazer mudanças, e muitas pessoas com muita vontade.
Temos tido governos eleitos com o voto do povo que repetidamente lesam e desiludem o povo. Os governos – quaisquer que sejam – juntas de freguesia, câmaras municipais ou Estado, deveriam ser os lugares mais responsáveis, transformadores e admiráveis do país, mas o que vemos é uma sem ‘vergonhice’ total, de corrupção, favorecimentos, gestão ligeira e descuidada.
Não há comparação com o País do Estado Novo, com a miséria que era a vida da absoluta maioria das pessoas, mas demos muitos tropeções. E um deles, o maior na minha opinião, tem sido na Educação. Que cidadania e consciência é que temos estado a construir nas últimas décadas? Disciplinas de fachada, programas ultrapassados, escolas disfuncionais.
A escola não está feita para valorizar o local, para integrar o conhecimento e as experiências da comunidade, para transformar esse conhecimento e experiências em matéria-prima para o bem-estar. Opera numa linha direita onde todos aprendem o mesmo, mas o mesmo não fala das suas vidas, do seu sentido prático, da sua urgência, das suas mágoas.
O que sabem os jovens sobre a indústria conserveira em Setúbal e sobre as lutas que os trabalhadores tiveram? Não sabem, mas vários deles tiveram avós que ali gastaram as costas. Ou o que sabem sobre saúde mental ou recibos verdes antes de terem de os passar sem a mínima formação financeira? Não sabem, nem isso nem quantas espécies protegidas vivem no estuário do Sado… ou que programas de intercâmbios internacionais ou de apoio à habitação jovem existem no País.
Setúbal é um dos concelhos com menor número de candidaturas aprovadas pelo programa do Governo que apoia financeiramente o arrendamento jovem e isso não é por acaso. Por um lado, porque os critérios desse programa estão desajustados da geografia, e por outro porque a escola não está a preparar para a vida no seu sentido prático. E isso tem causado muitas frustrações nas várias gerações.
É dessa frustração e desse descontentamento que está a parir-se o crescimento da extrema-direita. Ali, ao menos, há alguém que está a falar de coisas que eles sentem na pele, mesmo que mintam, viciem informação, explorem a desinformação, aproveitem a ignorância ou o pouco conhecimento.
A Educação é o travão para esse crescimento. A que se trabalha na escola, em casa, nos clubes de futebol, nas aulas de ballet, nos ATL, na maneira como se escolhe gerir um café ou um restaurante.
Tendo nascido no pós-25 de Abril, tem memória de alguma história contada por algum familiar que veja como um retrato daqueles tempos?
Sim, há uma memória curiosa que os meus pais contavam. Que muitas famílias – as suas inclusive – viviam em casas onde cada quarto era ocupado por um núcleo familiar. Ou seja, num mesmo quarto viviam pai, mãe e filhos, às vezes só separados na sua intimidade por uma cortina posta num esticador. E no quarto havia também um bacio que todos usavam para as suas necessidades. Não havia casas de banho. As fezes eram depois recolhidas à porta, o cheiro era nauseabundo.
Parece uma história medieval mas foi mesmo só há algumas décadas. Mais do que pobreza, vivia-se numa grande miséria.
O que simboliza o dia 25 de Abril para si?
Um País inteiro, com pessoas eleitas por um conjunto de pessoas esclarecidas, em lugares de decisão colectiva que fazem por honrar cada dia.