22 Agosto 2024, Quinta-feira

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“Fazia parte do Círculo Cultural de Setúbal antes do 25 de Abril e notava que a Guerra Colonial era um não-assunto”

“Fazia parte do Círculo Cultural de Setúbal antes do 25 de Abril e notava que a Guerra Colonial era um não-assunto”

“Fazia parte do Círculo Cultural de Setúbal antes do 25 de Abril e notava que a Guerra Colonial era um não-assunto”

O dia da Revolução só foi sentido dias depois de acontecer. O 1.º de Maio foi a verdadeira ‘festa da Liberdade’ porque foi nesse momento que a Praça do Bocage se encheu de gente. Quem o diz é um entendido da história da cidade de Setúbal e que participou nos acontecimentos de 1974

Alberto Sousa Pereira, 78 anos, é uma das figuras mais activas dos primeiros tempos do pós-25 de Abril na cidade de Setúbal. Aposentado da profissão de professor, que exerceu tanto no ensino básico como no secundário em várias escolas – entre as quais a Escola Comercial de Setúbal, agora a Escola Secundária Sebastião da Gama – e de várias disciplinas. É também sindicalista do Sindicato dos Professores da Grande Lisboa (SPGL).

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Agora é historiador, com um vasto trabalho dedicado à cidade de Setúbal de onde já nasceram, por exemplo, as obras “Anais de Setúbal do século XX” e “A indústria das conservas de peixe em Setúbal”. Foi um dos sócios fundadores do Círculo Cultural de Setúbal, movimento muito importante para que a cidade não parasse nos dias depois da conquistada Liberdade.

Fez parte da Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Setúbal, que foi formada dias depois da Revolução dos Cravos e mais tarde, na continuidade do seu percurso político, cumpriu vários mandatos na Assembleia Municipal deste mesmo concelho.

Sobre o dia em que a revolução rebentou explica que não se passava nada em Setúbal, e só mais tarde as pessoas começaram a ter a percepção do que se estava a acontecer em Lisboa. Em entrevista a O SETUBALENSE explica como a censura era “refinada” nas várias áreas artísticas, mas também no jornalismo. Nesse ano, a 1 de Maio, explica que foi o dia em que viu a Praça do Bocage com um aglomerado tão grande de pessoas.

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Antes do 25 de Abril de 1974, como é que era a vida aqui na cidade de Setúbal?

A maior parte das pessoas não tinha uma percepção real de como viviam. Viviam muito ligadas ao seu rendimento e à sua qualidade de vida. Se a qualidade de vida não é má, a vida não é má.

Nessa altura estava-se a chegar ao fim de um ciclo económico da ditadura – que começou nos anos 60 – e não se vivia mal em Setúbal, para a maior parte das pessoas.

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Havia pessoas a construir casas na Terra, havia duas ou três marisqueiras em Setúbal, muita parte da população não vivia mal, alguns já mandavam os filhos à escola para fazer a quarta classe – coisa que na geração deles era impossível – mas depois havia um mundo oculto que era o mundo dos pobres, aqueles que viviam na periferia da cidade e nos bairros de lata. As pessoas que viviam relativamente perto do centro da cidade, até nem viviam muito mal, e quanto aos aspectos políticos, a maior parte não tinha percepção.

A ditadura já tinha muitos anos, já estava muito refinada, a censura também refinava muito bem, a PIDE era muito cautelosa nas suas intervenções. Note que maior parte das pessoas não se apercebiam que viviam num regime de ditadura. Desconfio que por volta de 1973 se o Marcelo Caetano fizesse um referendo nacional se ‘querem ou não democracia?, julgo que a maior parte das pessoas diziam que não queremos.

Havia mais pessoas coniventes com o regime político do que propriamente contra?

Não eram coniventes, como estavam, não estavam mal. Agora vamos mudar para quê? A guerra colonial é que, por exemplo, era um problema pouco ou nada falado, mas que atingia quase todos os portugueses. Os meus pais tiveram os dois filhos na guerra colonial, toda a gente tinha um filho ou um irmão na guerra, mas esta como também já durava há muito tempo e como cá em Portugal Continental não havia reflexos – sem ser os militares que morriam , a maior parte da população também não se apercebia bem do que era, só quando chegava a altura de um filho ir para lá.

Depois passados dois anos o filho regressava, havia uma tendência dos militares para não falarem do assunto, era um não-assunto. Eu fazia parte do Círculo Cultural de Setúbal, antes do 25 de Abril, e mesmo aí notava que a guerra colonial era um não-assunto.

Havia à época artistas dos quais houvesse histórias que tinham sido censurados?

A censura não era sentida pela maioria da população. Uma pessoa que pegasse em um O SETUBALENSE que saísse nessa altura, e tirando um pequeno anúncio que dizia ‘este número foi revisado pela Comissão de Censura’ – era obrigatório estar em todos os números tirando isso, a pessoa não sentia isso.

Eu costumo dizer que antes do 25 de Abril Portugal era o País mais feliz do Mundo: não havia suicídios, não havia presidentes da câmara corruptos, pedofilia, carteiristas, os homens não batiam nas mulheres, não havia crianças abandonadas, quer dizer, havia, só que não se falava.

E algum jornal que se arriscasse a falar nisto a censura cortava, mas quem lesse a Imprensa, quem ouvisse rádio, quem ouvisse noticiário na televisão, não ouvia nada que corresse mal em Portugal, só as coisas boas é que passavam ao público.

E os jornalistas?

Os jornalistas antes da Liberdade eram treinados na redacção para tentar ludibriar a censura.

Eles próprios aprendiam, quando queriam falar em socialismo falavam numa nova sociedade, e para os censores aquilo corria. Havia um jornal cá em Setúbal – que era o Notícias de Setúbal – da Igreja Católica, e a censura facilitava. Por exemplo o Presidente da República Américo Tomás fazia discursos disparatados por exemplo “O discurso dos Pintassilgos” ou “Discurso das Barragens – e então pegavam no discurso, escolhiam as partes mais cómicas e punham no jornal como citação, então e eles iam censurar um discurso do senhor presidente?

Onde a censura se fazia muito sentir era na produção teatral. A pessoa escrevia a peça e depois para ser utilizada no teatro tinha de ter autorização da censura, na pintura pouco havia. Os livros, não iam à censura. Primeiro eram publicados e havia censura posterior, o que era terrível, saíam 2 mil exemplares e vendiam por exemplo 600, e depois a censura era exercida pela PIDE.

Onde eles eram muito implacáveis era no cinema. Consta, não se sabe, que o António Salazar terá dito assim “a maior parte do povo português é analfabeto, mas não é surdo nem mudo”, e faz sentido. As coisas escritas ainda passavam, agora no cinema era horrível.

Os filmes iam todos à censura obrigatoriamente e filmes que escapavam sem cortes eram uns 15%.

Na sua perspectiva como é que foi o 25 de Abril de 1974 aqui em Setúbal?

O 25 de Abril aqui em Setúbal foi nada. O sol nasceu, foi uma quinta-feira, um dia de Primavera muito bonito, com boa temperatura e eu ia trabalhar cedo e um pouco antes das 8 horas passei em frente à Escola Comercial de Setúbal, no Bonfim, e vejo uma multidão de centenas de alunos muito excitados, e pensei que pudesse ser uma visita de estudo.

As camionetas não apareceram porque a companhia soube que havia umas confusões grandes em Lisboa e nem mandou os autocarros. O primeiro impacto do 25 de Abril na cidade foi esse. A seguir chegamos aos nossos empregos e algumas pessoas captaram muito cedo que não havia rádios, só estava uma a funcionar que transmitia música militar, depois ouviu-se um comunicado, uma coisa muito esquisita, as pessoas não sabiam o que se passava.

Quem lia aquilo, e estava dentro dos assuntos como eu, sabia que estava a haver um golpe de Estado em Lisboa, mas era de esquerda ou de direita? Ninguém sabia. Às 11h30 a rádio começa a tocar uma canção do Zeca Afonso e quem sabia disse logo que o golpe era de esquerda, só um golpe de esquerda é que passa José Afonso porque ele estava proibido de passar na rádio.

No dia 26 é que a cidade acorda com a ideia do Dia da Liberdade e nessa noite há uma reunião no Círculo Cultural de Setúbal, com o que chamavam de intelectuais de esquerda, que é onde nasce
o Movimento Democrático de Setúbal. Tiveram imediatamente a ideia de fechar a PIDE e a Legião Portuguesa, que fecharam no dia 27.

De que forma é que o Círculo Cultural de Setúbal contribuiu para que a cidade continuasse com ritmo?

Foi fundamental porque começaram a reunir todas as noites, o círculo concentrava aquilo que se chamava a intelectualidade setubalense e os actividades políticos concentravam-se ali todos.

Reuniões constantes, um bocadinho caóticas, marcavam se sessões para ir pintar frases na parede. O círculo era o grande aglomerado dos activistas políticos da cidade. Foi aqui que surgiu uma série de plenários no Naval Setubalense para criar a comissão administrativa para tomar conta da câmara de Setúbal, da qual eu fiz parte.

Tinham um conjunto de activistas com experiência, com conhecimento político, também o entusiasmo de muitos jovens. Podemos dizer que, talvez até finais de Maio, o círculo foi fundamental. Depois começam a aparecer os partidos políticos.

E como é que correu o primeiro dia 1 de Maio em Setúbal?

O primeiro de Maio foi o dia em que vi mais pessoas na Praça do Bocage. Desconfio que há pessoas que nunca tinham saído do seu bairro e nesse dia vieram ao centro da cidade, aquilo estava cheio, com uns cartazes pintados à mão que diziam ‘fim à guerra colonial’, ‘viva o povo’, coisas muito simples, mas era o que havia. Um entusiasmo enorme, o presidente da câmara teve a excelente ideia de abrir as portas do edifício e quem quisesse ia lá para cima, naquela varanda cheia de gente estava lá eu.

Falaram várias pessoas e diziam qualquer coisa e punham lá as palavras Liberdade e Igualdade, qualquer coisa que fosse dito e tivesse estas palavras as pessoas batiam palmas, mas sinceras. Foi uma festa, com uma multidão impressionante, ainda hoje olho para a fotografia e pergunto como é que estava tanta gente em Setúbal.

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