23 Agosto 2024, Sexta-feira

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“Denunciarmos os PIDE?! Quem foi, foi. Não queremos nada. Esta foi a última conversa que tive com Zeca Afonso”

“Denunciarmos os PIDE?! Quem foi, foi. Não queremos nada. Esta foi a última conversa que tive com Zeca Afonso”

“Denunciarmos os PIDE?! Quem foi, foi. Não queremos nada. Esta foi a última conversa que tive com Zeca Afonso”

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Esteve em associações que se opuseram ao Estado Novo e lutou pelos direitos dos professores. Nunca foi preso pela PIDE, mas estava ‘marcado’

Hoje, presidente da UNISETI-Universidade Sénior de Setúbal, Arlindo Mota tem uma história contra o regime do Estado Novo que se iniciou ainda na juventude como estudante no Liceu Pedro Nunes, em Lisboa.

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Começou por integrar a Comissão Pró-Associação dos Estudantes Liceais, teve uma rusga em casa por agentes da PIDE e, mais tarde, já como professor, esteve na origem da reivindicação da classe pelo direito ao salário continuo e ao não despedimento ano após ano lectivo.

Quando chegou a Setúbal, continuou essa luta, esbarrou novamente com gente do antigo regime, mas ganhou ‘músculo’ político junto do Círculo Cultural de Setúbal para onde foi convidado por Zeca Afonso. Neste núcleo de força democrática deu aulas e participou em debates.

Entretanto, sentava-se à mesa do antigo Café Central, no Largo du Bocage, com gente que projectava a democracia para o futuro do País.

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Arma que não guarda rancores e lembra a última conversa que teve com o canta-autor da Liberdade: “Denunciar os PIDE que nos denunciaram?!, Quem foi, foi. Não queremos nada”.

Guarda um documento da PIDE/ DGS que, sobre si, relata: “Embora não esteja há pouco tempo a residir nesta cidade [Setúbal], é considerado elemento desafecto, pois é visto frequentemente, no Café Central, a conversar com indivíduos anti-situacionistas como José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos (Zeca Afonso], e outros.

A sua actividade política antes do 25 de Abril de 1974 esteve ligada à luta pelos direitos dos professores.

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Sim, foi algo que se concretizou. Mas a minha actividade política contra a ditadura começou ainda quando estudante em Lisboa, no Liceu Pedro Nunes, em 1964. Com cerca de 16 anos fui eleito vice-presidente da Comissão Pró-Associação dos Estudantes Liceais, que envolvia outros liceus de Lisboa.

Lembro-me que na minha turma estava um colega que, mais tarde, acabou por ser assassinado pela PIDE [Polícia Internacional e de Defesa do Estado] na Faculdade de Letras.

Em 1964 criámos a revista “O Intervalo”, a qual dirigi. Das cinco publicações dessa revista, uma delas, a de 28 de Janeiro de 1965, foi imprensa a negro como protesto contra as prisões em massa de estudantes que começaram a ocorrer, um dos que foi preso era o presidente da Pró-Associação; foi levado para a Prisão do Aljube.

Nessa altura, com outro colega, fui eleito vice-presidente da Pró-Associação. Os agentes da PIDE iam a casa das pessoas e, simplesmente, prendiam-nas. Chegaram a ir a minha casa, mas consegui atirar pela janela literatura que me podia comprometer, entre elas jornais Avante!, nada apanharam, a não ser alguns livros que consideravam serem contra o regime, mas não me prenderam. Eram os “homens da gabardine”, como lhes chamavam.

A Comissão Pr’o Associação dos Estudantes Liceais chegou a ser formalmente criada?

As Pró-Associações existiam, publicavam, faziam abaixo-assinados, mas não tinham sede nos liceus. Faziam parte da RIA (Reunião Inter Associações), uma das pessoas da RIA era o Ruben de Carvalho, que veio a ter ligações a Setúbal [em 1995 é deputado à Assembleia da República eleito pelo círculo de Setúbal e em 1997 foi vereador da Câmara Municipal de Setúbal].

Ele era jornalista no jornal O Século e, em 1965, criou a publicação Unidade Estudantil que denunciou as prisões. Nessa altura acontece a retoma do movimento estudantil contra a ditadura, mas, entretanto, a repressão é reforçada em 1968, e voltam as prisões em massa de estudantes.

Em 1968, na sequência de um grave acidente doméstico, Oliveira Salazar é exonerado da Presidência do Conselho e substituído por Marcelo Caetano. Em 1969 realizam-se eleições legislativas. Qual foi a sua participação?

Nessa altura eu estava na Universidade de Letras, no curso de Filosofia. Fui eleito pelos delegados como dirigente, com outro colega, desse curso. Nesse ano, Marcelo Caetano, como União Nacional, [organização política frentista e fascista criada para apoio ao regime ditatorial do Estado Novo] concorre às primeiras eleições depois da morte de Oliveira Salazar.

O PCP e também o PS, recentemente constituído, formaram comissões com nomes que não podiam indicar os partidos, foram comissões ou movimentos: MDP/CDE – Movimento Democrático Português / Comissão Democrática Eleitoral, Comissão Eleitoral de Unidade Democrática e a Comissão Eleitoral Monárquica.

Com Víctor Constâncio, que foi meu colega, fomos com outros colegas como delegados para verificar se na Escola Pedro de Santarém as eleições estavam a correr bem. A verdade é que ganhámos, mas a União Nacional, com votos de chapelada, ganhou.

Entretanto, José Hermano Saraiva, que viveu em Palmela, enquanto ministro da Educação no Estado Novo [entre 1968 e 1970] publica a reforma que cria os bacharelatos os quais permitem concorrer como professor aos liceus. Nessa altura já havia falta de professores.

Aproveitando essa reforma fui para Vila Viçosa como professor. Como professor provisório, eu e a minha mulher-só mais tarde fiz a licenciatura em Filosofia e muito mais tarde o doutoramento. Na altura 80% dos professores eram provisórios e em Julho eram despedidos e não recebiam Agosto e Setembro. Para continuarmos na mesma escola ou liceu tínhamos e pedir a recondução ao director da escola. Se fosse autorizada, apresentávamo-nos a 5 de Outubro.

Quando vem para Setúbal?

Sentia-me muito bem em Vila Viçosa, mas vinha sempre a Lisboa quando podia. Para lutar contra o sermos despedidos todos os anos e não receber em Agosto e Setembro, vários professores constituíram o Grupo de Estudos do Pessoal Docente, que era um movimento que representava 80% dos professores.

Reuníamos na Escola Francisco Arruda, em Lisboa, com o objectivo sindical dos professores receberem ordenado também em Agosto e Setembro, e continuarem livremente nas escolas onde estavam colocados. A minha vinda de Vila Viçosa para Setúbal, em 1971/72 foi para me aproximar de Lisboa.

Não tive lugar em Lisboa e fui colocado na Escola Básica 2,3 Barbosa do Bocage, em Setúbal, onde comecei a frequentar o então Café Central, na Praça de Bocage. A primeira pessoa com que me encontrei nesse café foi com Zeca Afonso, já nos conhecíamos e aproximámo-nos ainda mais; eu era de Filosofia e ele professor de Histórico-Filosóficas.

Além de muitas trocas de ideias, trocávamos também livros. Comecei a ir a casa dele, que era perto do Quebedo, quando me convidou para fazer parte do Círculo Cultural de Setúbal. Na altura existiam duas instituições progressistas em Setúbal onde se juntavam vários democratas da oposição ao regime do Estado Novo; eram o Círculo Cultural de Setúbal e o Clube de Campismo de Setúbal.

No Círculo Cultural de Setúbal faziam-se colóquios, davam-se aulas gratuitamente a pessoas mais velhas que depois se propunham a exame. Entretanto, com um grupo de professores, propus um abaixo- assinado sobre a reivindicação para recebermos nas férias e ficarmos vinculados a uma escola.

Fui um dos dez elementos que foram designados para reunir com Veiga Simão, que era então ministro da Educação Nacional, um homem que sendo nomeado por Marcelo Caetano não era fascista.

Recebeu-nos como Grupo de Estudos de Professores e ouviu-nos com toda atenção, mas à noite, um
secretario de Estado, na televisão, veio ameaçar-nos com seis anos de cadeia. Claro que houve gente presa, mas nós continuamos a agir abertamente.

Entretanto, o abaixo-assinado que ajudei a promover, foi subscrito por 80% dos professores, e enviamos esse documento para Lisboa. Em sequência disso, o director do liceu em Setúbal não me quis reconduzir e, para me desmotivar, deu-me um horário difícil, cheio de ‘furos’. Foi esse mesmo director que saneou o
Zeca Afonso, que deixou de poder dar aulas.

Passei a estar mais tempo no Café Central a conversar com pessoas que não aceitavam o Estado Novo,
e comecei também a escrever no jornal Notícias da Amadora que, conjuntamente com o Jornal do
Fundão, era da oposição. Fui um dos quinze autores com artigos mais censurados, e só escrevia
sobre educação.

Entretanto, fui convidado para trabalhar nos Estaleiros Navais da Setenave, uma indústria de construção e reparação naval que se estava a instalar em Setúbal, e como me pagavam o dobro do que então ganhava como professor, acabei por aceitar. Quando acontece o 25 de Abril de 1974 estava na Setenave como director do Departamento de Marketing, e, em Julho de 1974, criei o jornal O Margem Sul com as pessoas de esquerda de Setúbal, foi um jornal que durou até Julho de 1975, nessa altura já se podia escrever livremente.

O que aconteceu com o Grupo de Estudos de Professores e as suas reivindicações?

Em 1973, já no final da ditadura, o ministro Veiga Simão criou os ciclos preparatórios. Na altura, quando se terminava a 4.a Classe os alunos iam para o 1.o Ciclo do Ensino Secundário, que ia até ao 5.o ano.

Criar os dois anos do Ciclo Preparatório veio permitir que os professores passassem a receber nas férias e serem reconduzidos automaticamente, tal como os professores pretendiam.

É importante lembrar que depois do 25 de Abril de 1974 foram constituídos os sindicatos de professores, designadamente da FENPROF, com grandes reivindicações que permitiram melhores salários para os
professores.

Entretanto, como a Setenave estava a passar por um mau momento com a abertura do Canal do Suez, concorri para dar aulas no liceu onde fui eleito pelos professores para a primeira direcção democrática do liceu; antes os directores eram nomeados pelo Ministério da Educação, estive nessas funções um ano.

Qual foi a sua última actividade política ainda contra a ditadura?

Já foi em democracia, em 1978. Passou-se num supermercado, junto ao Mercado de Setúbal, encontrei o Zeca Afonso, que já estava a morar em Azeitão. Perguntou-me: “O que é que a gente faz a isto”, referia-se sobre denunciar os indivíduos da PIDE que nos tinham denunciado pela nossas actividades contra o Estado Novo; a gente a que se referia era ele próprio, eu e uma professora.

Disse-me: “da Comissão de Extinção da PIDE querem saber que queremos fazer alguma coisa contra os que nos denunciaram”. Disse-lhe: “Penso o mesmo que tu. Hoje vivemos em liberdade, denunciarmos os PIDE?! Quem foi, foi, não queremos nada”. Esta foi a minha última grande conversa que tive com o Zeca Afonso.

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