Cónego D. João Alves, o primeiro “Bispo Vermelho”

Cónego D. João Alves, o primeiro “Bispo Vermelho”

Cónego D. João Alves, o primeiro “Bispo Vermelho”

O Estado Novo não percebia a missão de uma Igreja Católica que, em Setúbal, abria um novo discurso e se desemparelhava do regime fascista.

O epiteto “Bispo Vermelho”, que comummente é dado a D. Manuel Martins, primeiro bispo da Diocese de Setúbal, começou por ser atribuído a D. João Alves que, em 1966, veio para Setúbal para fundar a Diocese, o que nunca veio a acontecer pela muita oposição que encontrou por parte de algumas elites sadinas, receio do regime do Estado Novo, forças de esquerda e, de alguma forma, dentro da própria Igreja Católica.

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São meandros que chegaram aos últimos anos do período marcelista vividos em Setúbal, que o investigador, mestrado em História dos Séculos XIX’XX Albérico Afonso Costa resgatou, pela investigação, da sombra dos tempos que começaram em 1966. Numa Setúbal que começava a despertar com novas indústrias, eram muitos os cidadãos que viviam em padrões de pobreza dura. Com D. João Alves, a missão foi, além de cristianizar, prestar apoio social às gentes que viviam abrigadas em bairros de lata, e isso incomodou.

Numa das suas investigações, o professor Albérico Afonso Costa apercebeu-se de factos quase desconhecidos dos últimos anos do Estado Novo que mexeram com a cidade de Setúbal, nomeadamente o papel social da Igreja Católica que não foi nada bem aceite pelo antigo regime. Como foram marcados esses anos?

Nos últimos anos do regime marcelista [Marcelo Caetano, presidente do Conselho de Ministros no Estado Novo, de 1968 a 1974] a cidade de Setúbal viveu um processo de grande transformação com a chegada de novas indústrias que trouxeram uma nova realidade e atraíram jovens com escolaridade ao nível das escolas técnicas e também vindos das universidades.

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Esta transformação levou a que as pessoas estivessem mais disponíveis para receberem novas narrativas além das que vinham do Estado Novo. Criou-se assim um caldo cultural muito interessante que veio gerar uma grande força de oposição ao regime. Numa outra dimensão, esteve também a Igreja Católica que teve um papel na oposição ao regime do Estado Novo, o que era desconhecido.

Na última investigação que fizeram sobre este período, verifiquei que essa oposição não era a tradicional dos partidos comunistas, socialistas ou mesmo da extrema-esquerda. A Igreja Católica começou por tentar resolver o problema de se implantar numa região que era das mais descristianizadas do País e uma primeira decisão que toma foi o início da criação da Diocese de Setúbal, porque até aí havia apenas a área pastoral de Lisboa.

A partir de 1966, com a vinda do cónego D. João Alves para Setúbal, que tinha o objectivo de criar a Diocese em Setúbal, é implementada pela Igreja uma nova preocupação de natureza social, muito influenciada pelas doutrinas do Concílio Vaticano II, e isso depressa veio criar dinâmicas que põem a PIDE [Polícia Internacional e de Defesa do Estado responsável pela repressão do antigo regime] completamente em pânico.

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Essa intervenção pode ser vista a diversos níveis; desde logo houve um grupo de padres, chamados Padres da Fraternidade Operária das Praias do Sado, seminaristas que se voluntariaram nas principais fábricas da região, dentro da lógica de tentar cristianizar esta zona que estava descristianizada. Por outro lado, organizações de acção católica como a Juventude Operária Católica, a Liga Operária Católica e a própria Juventude Estudantil Católica, começam a ter uma intervenção na área social.

Evidentemente que não era uma intervenção no sentido de se confrontar com o regime, mas a própria lógica da sua participação e das suas preocupações sociais entraram em confronto com os ideais tradicionais do regime.

A própria polícia política ficou muito desconfiada e fez relatórios constantes para Lisboa, acusando, por exemplo, D. João Alves, que era uma figura muito respeitada na Igreja Católica — tinha sido o próprio Cardeal Cerejeira que o havia nomeado — de ser o “Bispo Vermelho”. Ou seja, a alcunha de “Bispo Vermelho” não começou a ser atribuída a D. Manuel Martins, e como ficou conhecido após 1975, mas sim a D. João Alves, que foi acusado desse nome em 1967 e 1968 69.

Dessa cristianização pode-se falar num conceito de liberdade e democracia?

É preciso perceber que as armas e intervenção da Igreja Católica não eram as que utilizava a oposição tradicional no conceito de liberdade e de luta contra a ditadura, o ponto de partida da Igreja Católica é muito mais a situação social em que viviam as populações. Por exemplo, em Setúbal, antes do 25 de Abril de 1974, cerca de 28 mil pessoas viviam em condições degradadas, 16 mil das quais viviam em barracas ou casas barracadas, é a Igreja Católica, através do secretário de acção social, implementado pelo cónego João Alves, que faz as primeiras creches para dar apoio aos diversos bairros da lata.

Não era propriamente a retórica da liberdade de expressão que mobilizava a Igreja, mas sim outro tipo de preocupações. No entanto, isso litigava contra aquilo que era o funcionamento normal do próprio regime do Estado Novo. Curiosamente, dentro da Igreja Católica, há sectores que começam a radicalizar-se, e é ela própria, movida pelas preocupações do Vaticano II, que vai ser das primeiras a contestar a guerra colonial.

Tudo isso foram fissuras em relação ao Estado Novo. A Igreja Católica, durante quase todo o período do fascismo, foi um dos suportes fundamentais desse regime; por isso, o início desta dissidência foi muito significativo. Sabia-se que algo nesse sentido havia acontecido em Lisboa e no Porto, mas não se conhecia a dimensão e o alcance dessa intervenção da Igreja em Setúbal, bem como na pastoral de Palmela e Barreiro.

Pode-se dizer que a Igreja Católica, pelo menos numa parte da Península e Setúbal, veio liderar o conceito de solidariedade e fraternidade?

De solidariedade e de fraternidade, de apoio social e apoio aos mais desfavorecidos. Mais de 80% das informações que a PIDE em Setúbal mandava para António Maria de Cardoso em Lisboa, [onde tinha a sede] são sobre a Igreja Católica ou sobre o Círculo Cultural de Setúbal onde existiam vários oposicionistas ao regime fascista.

Há algumas forças políticas, nomeadamente de esquerda, que se afirmam como as primeiras a tomarem as iniciativas de apoio às populações em Setúbal. Pelo que me diz foi a Igreja Católica.

A intervenção da oposição de esquerda ao antigo regime era muito pela intervenção ao nível sindical nas empresas, nas colectividades, e sempre numa lógica de apresentar uma alternativa global política, mas de facto a experiência de intervenção social ao nível local, nos bairros de lata em Setúbal, é feita pela Igreja Católica.

Essa foi uma das conclusões da sua investigação?

Sim foi. A intervenção de esquerda ao nível desse espaço existia, mas era no sentido de uma perspectiva mais de propaganda, ciente da necessidade de liberdade, de lutar contra a ditadura e melhores salários, mas o apoio efectivo às comunidades locais, principalmente às mais desfavorecidas, é a Igreja Católica que tem essa preocupação. Não é por acaso que a polícia política †ca em pânico e faz inúmeros relatórios a desconfiar dessa acção, não percebia como é que a Igreja Católica, que tinha estado sempre ligada ao regime do Estado Novo, começou aquele desvario, como eles chamavam.

Pode-se dizer que a Igreja Católica, nessa altura, pelo trabalho social, fez crescer mentalidades?

Sim. Tudo isto veio modificar a situação que existia antes do 25 de Abril. Nesta minha investigação percebi que não houve unicamente uma oposição ao Estado Novo, mas havia várias oposições e a Igreja Católica, não é como um todo, mas em vários sectores no seu seio diferenciaram-se mercê da sua intervenção social, e foram um factor importante da contestação ao regime de então.

Conseguiu perceber o que levou o cardeal Cerejeira, Patriarca de Lisboa e que dirigiu a Igreja Católica Portuguesa durante o Estado Novo, a nomear D. João Alves para dar início à Diocese de Setúbal, tendo em conta as acções que veio a tomar?

As pessoas com quem falei disseram-me que nunca ouviram D. João Alves criticar abertamente o regime do Estado Novo. Mas tinha uma posição muito forte nas suas convicções de apoio às populações, e isso chegava para surpreender e também para criar um mau estar dentro das próprias elites do regime e dentro da polícia política. Por exemplo, houve um Carnaval, em 1971 ou 72, em que as elites conservadoras ligadas ao Clube de Campismo de Setúbal, ridicularizaram D. João Alves vestindo-se de Bispo Vermelho fazendo-lhe uma paródia no cortejo numa crítica muito feroz. No fundo, seguiram o guião da polícia política de distanciamento e crítica a D. João Alves.

O certo é que a criação da Diocese de Setúbal não avançou com o cónego D. João Alves.

A Diocese de Setúbal veio a ser criada 11 anos mais tarde, em Outubro de 1975, com D. Manuel Martins. Um facto curioso; a Igreja Católica, depois da turbulência revolucionária, perde influência a sul do País, e não é por acaso que para a criação da Diocese de Setúbal, numa altura de grande confrontação social e política, com o País à beira de uma guerra civil, não é escolhido D. João Alves, mas sim D. Manuel Martins que, creio, tinha ligações ao Bispo do Porto e era tido como um homem com preocupações sociais que poderia estabelecer alguma ligação com as novas elites dirigentes locais do pós-revolução. É também muito curioso ver que surgiu uma forte contestação popular que não assumia a nomeação do D. Manuel Martins. Quando ele foi ordenado na Sé de Setúbal, houve manifestações de algumas centenas de pessoas em que a PSP não as conseguiu conter e teve de vir o exército. Houve o perigo de haver uma confrontação, e surgiram tentativas de boicote à ordenação de D. Manuel Martins como bispo de Setúbal. Inclusivamente, os carros dos bispos e o do cardeal D. António Ribeiro, Patriarca de Lisboa na altura, foram vandalizados porque a esquerda e principalmente a extrema-esquerda, hostilizaram o bispo.

Isso aconteceu porquê?

Porque a Igreja Católica tentou entrar numa zona que era descristianizada e hegemonizada pela esquerda e pela extrema esquerda na cidade de Setúbal, no sentido de tentar ter aqui uma acção mais decisiva, e isso foi rejeitado pelas forças de esquerda na altura.

Portanto, o bispo D. Manuel Martins, que foi bastante consensual na região, inicialmente não foi aceite.

Inicialmente não. Curiosamente, após essa contestação inicial, cerca de um ano depois D. Manuel Martins passa a ser o “Bispo Vermelho”.

Veio a receber a alcunha que foi dada a D. João Alves.

Possivelmente nem ele sabia o que tinha acontecido antes. Eu é que trouxe agora esta designação, com base no que investiguei, nunca a tinha ouvido antes.

Indagou e descobriu esta relação na História.

Para mim foi uma surpresa enorme. Quando comecei a fazer esta investigação estava longe de vir a conhecer isto. A minha intenção era perceber como é que a resistência ao Estado Novo tinha operado em Setúbal, e tinha pensado, principalmente, nas fundamentais forças políticas na altura; o Partido Comunista que hegemonizava essa luta política. Para mim foi uma surpresa imensa quando comecei a desfiar este período da História e percebi que tinham existidos forças sociais, culturais e religiosas, nomeadamente ao nível dos católicos, que se tinham oposto ao regime do Estado Novo.

Qual o motivo para que D. João Alves nunca tivesse criado a Diocese de Setúbal?

Houve várias contradições dentro da própria Igreja, o facto é que a Diocese de Setúbal só veio a ser criada no “Verão Quente” de 1975. Foram várias as querelas no seio da Igreja Católica, nomeadamente quem †caria a gerir o Seminário de Almada e o Cristo Rei – D. João Alves tinha sido director do Seminário de Almada e também tinha estado no Seminário dos Olivais -, essas querelas levaram a 11 anos até ser criada a Diocese de Setúbal, quando era visto já em 1966 como uma urgência.

Na cidade de Setúbal foi erigida uma estátua em homenagem a D. Manuel Martins, frente à Sé de Setúbal, e a D. João Alves existe algum reconhecimento a relembrar o seu trabalho?

Não. Foi um homem completamente ignorado, e assim continua. Faz todo o sentido que figure na toponímia da cidade. Agora que me está a dizer isso, vou apresentar essa proposta, faz todo o sentido que a cidade o homenageie.

Reproducao digital capturada a partir de negativo original em pelicula de acetato de celulose a preto e branco 35mm em tira da coleccao fotografica Americo Ribeiro do Arquivo Fotografico Municipal Americo Ribeiro da Camara Municipal de Setubal
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