26 Agosto 2024, Segunda-feira

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As lágrimas “proibidas” que custaram a Liberdade

As lágrimas “proibidas” que custaram a Liberdade

As lágrimas “proibidas” que custaram a Liberdade

Manuel Rodrigues exibe o diploma da Medalha de Bravura e Altruísmo que o município do Barreiro atribuiu este ano a seu pai (a título póstumo) e que conta com o registo da detenção do arquivo da PIDE

Manuel Rodrigues lembra o motivo e como o pai foi preso pela PIDE, as enchentes nos comícios e um magusto na casa de Cadeireiro com cerco da GNR a cavalo

Lá em casa, na Moita, todos sabiam que mais cedo ou mais tarde o momento chegaria pela segunda vez. E ele fora instruído para não chorar. Primeiro, e apesar de nem ter ainda chegado à idade da puberdade, aguentou firme.

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Mas, depois de ver o pai sair a porta arrastado pela PIDE, refugiou-se desfeito em lágrimas abraçado à mãe. Hoje recorda este e outros momentos da vida de um dos heróis da luta contra o regime: Staline de Jesus Rodrigues. Só que agora, ao mostrar o conjunto de fotos, documentos, cartas, livros, relatório da detenção do seu pai, decisões judiciais e recursos… – valioso espólio que traduz muito da génese do 25 de Abril –, Manuel Rodrigues, 64 anos, já pode deixar apoderar-se pelos sentimentos, que o traíram em criança, e voar como uma ‘gaivota, de asas de vento e coração de mar’.

E não se contém ao erguer uma foto de um comício de coragem, onde se identifica no meio de uma multidão que encheu a sala do Ginásio Atlético Clube, na Baixa da Banheira, em 1969. “Este sou eu, de camisa branca, sempre perseguido por ser filho de quem era. Isto não eram comícios com 10 pessoas”, aponta, por entre breves soluços e um reeditar de lágrimas antigas, hoje, porém, temperadas com o sal de uma Liberdade que, se fosse humana, teria acabado de atingir a meia-idade.

“O meu pai foi o único preso político que esteve [detido] em todas as cadeias políticas: Caxias, Peniche, Porto e Aljube”, afirma, no interior da garagem para onde transferiu uma para fernália de memórias, como uma mesa de xadrez construída pelo seu pai, e alguns dos seus próprios trabalhos.

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O fio condutor da conversa é rapidamente ultrapassado pela liberdade dos mil e um pensamentos que cada foto, cada documento, sugerem.

Staline Rodrigues faleceu em 2 de Abril de 2022, aos 89 anos. E Manuel puxa a fita atrás para explicar o principal motivo que levou o pai a ter de comer ‘o pão que o diabo amassou’.

“O meu pai acabou por ser preso por uma questão interessante: as pessoas tinham de se recensear para votar e ele, como na altura tinha seis casas de móveis no concelho da Moita, acabou por tornar as suas lojas em pontos de recenseamento. Recenseou na Moita 900 pessoas. Foi a julgamento por ter recenseado 900 pessoas, em 1969. Esteve preso dois anos e dois dias no total, 18 meses de uma vez e seis meses de outra. Saiu em 5 de Julho de 1972”, recorda, antes de se deter num dos momentos mais aprisionados na sua memória.

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“Foi preso pela primeira vez em 1962, já me deixava quando eu tinha 2 anos. Aos 9 anos, quando esteve mais tempo preso, sabíamos que ele ia ser detido em breve. Ele e a minha Staline de Jesus Rodrigues mãe ensinaram-me a não chorar no momento em que a PIDE chegasse à nossa casa. Consegui aguentar-me,
quando quatro polícias vestidos de fato entraram a porta.

Desarrumaram tudo, gritaram e levaram o meu pai. Tal como tinha sido instruído não vacilei, não chorei. Mas quando o vi sair, preso, comecei a chorar agarrado à minha mãe”, conta, para confessar de seguida o embaraço que sentiu e que lhe atormenta a paz de espírito. “O meu pai pediu um lenço e a PIDE voltou a casa.

Viram-me a chorar, foi para mim uma grande vergonha. Mas a minha mãe disse-me: ‘Deixa estar filho, também é preciso chorar’”, adianta e volta a ser traído pelas lágrimas, passageiras mas libertadoras.

Staline de Jesus Rodrigues

Ercília, Malheiro e a palavra

Do coração de uma considerável caixa plástica, à pinha, sem espaço para ser revirada, já havia arranjado forma de retirar vários documentos e fotos.

E uma despertara-lhe a atenção. “Esta fotografia é muito importante para a história da região e do País, porque estão aqui Ercília Talhadas, uma operária fabril que foi uma grande lutadora pela liberdade, o meu pai e José Malheiro a discursar. É para as eleições de 1969. Estamos a falar de uma Capricho Moitense com mil pessoas lá dentro e outras na rua”, indica, desta vez com um sinal de admiração no olhar.

“O Malheiro era um dentista de Almada. Tinha um dom único de oratória e a particularidade de começar sempre os discursos por uma palavra, que jamais esquecerei: ‘Mulheres’. A política, na altura, era só para os homens e o Malheiro começava por falar para as mulheres.

Ao fazê-lo trazia milhares de pessoas atrás, os seus discursos eram sempre os mais esperados”, salienta.

Logo de seguida lança mão de uma outra imagem, igualmente impressionante pela moldura humana que apresenta. “É o congresso de Aveiro em 1973, julgo, onde o meu pai es teve. Chegou a casa com o casaco completamente rasgado pelos cães da polícia política”, assinala, com as emoções à flor da pele, como a voz trémula deixa transparecer.

Os registos fotográficos trazem à tona outras lembranças e Manuel revive mais um dos momentos que guarda dos tempos difíceis. “Por volta de 1970, entre as eleições de 69 e 73 [sufrágios criados na vigência de Marcello Caetano para ‘inglês ver], fez-se um magusto na casa de Manuel Cadeireiro, com todas as pessoas que lutavam contra o regime e com uma recolha de fundos, que eram colocados num balde de metal.

De repente, quando olhámos, está vamos cercados por cavalos da GNR e o meu pai pediu que me colocasse em cima do balde, a fingir que estava a brincar, porque se soubessem que estava a ser feita uma recolha de fundos a coisa seria ainda mais grave.

Passei o tempo sentado em cima do balde, a ver a guarda a deter o meu pai e a identificar outras pessoas”, relata. Mas agora trava a fundo para fazer justiça a quem também teve de
“passar as passas do Algarve”, a seu lado, entre paredes. “É curioso que perguntam-me sempre pelo meu pai, mas ninguém se lembra de me perguntar sobre a minha mãe. Ela teve um papel fundamental”,
atira Manuel Rodrigues. É que o preço a pagar pela luta pela liberdade também provocou dor e quase custou a vida à mulher (ver texto ao lado). E a continuação da história de Staline Rodrigues – longe de se esgotar no pré-25 de Abril – seria retomada mais à frente.

Os comícios antes de 1974 no concelho da Moita provocavam enchentes

MANUELA RODRIGUES BALÁ
A força da mulher ao lado de Staline

Não por detrás, mas sim ao lado do homem que enfrentou a ditadura havia também uma grande mulher.
Manuela Rodrigues (ou Balá, como era mais conhecida) deitou as mãos à obra e soube garantir a continuidade dos negócios do marido – contributo que, nos dias que correm, podia concorrer como exemplo para a afirmação da igualdade de género, com a qual, naquela época, poucos ou nenhuns sonhavam. “Quando o meu pai foi preso, a minha mãe tomou as rédeas da empresa de móveis.

Aquilo era uma escola de marceneiros e a minha mãe ensinava a bordar. Foi a grande obreira de tudo
o que materialmente a família conseguiu”, diz Manuel Rodrigues, sem esconder orgulho e satisfação por poder fazer justiça ao papel desempenhado pela progenitora, sobretudo, durante a ausência de Staline Rodrigues.

Até porque, Manuela Balá foi uma “mulher de armas”, que lutou até ao limiar das forças para ultrapassar as adversidades e encarreirar a vida. Um esforço que quase lhe foi fatal. Balá faleceu há duas décadas, mas a tragedia podia tê-la apanhado na curva muito antes.

“Os meus pais compravam móveis em Paços de Ferreira e a minha mãe chegava a sair da Moita com um camião de 3 500 Kg, fazer oito horas para Paços de Ferreira, carregar o camião, dormir e voltar, ao ponto em que houve um dia em que na curva para a ponte de Vila Franca já não tinha mais forças para conduzir e deixou o camião cair”, recorda o filho, com a voz embargada, olhos de novo molhados e à procura de mais palavras que não viria a encontrar antes de fazer uma ligeira pausa.
“Passaram 60 anos e os empregados que trabalharam para os meus pais ainda são nossos amigos. Ainda há pouco tempo falei com um, o José Luís, e fiquei a saber que, para ele fugir da polícia política e à guerra [colonial], foi o meu pai quem lhe pagou a viagem para França”, recupera Manuel, como que a refugiar-se inadvertidamente num campo de positividade – qual mecanismo de autodefesa – para combater a angústia e ganhar ânimo para prosseguir.

As qualidades humanas dos seus pais, que lhe têm sido testemunhadas por terceiros, retemperam-lhe a alma.

E com o fôlego retomado e a ajuda do inseparável par de óculos deleita-se a partilhar um trecho de uma carta, escrita a tinta azul e datada de 17 de Maio de 1970, que a mãe enviou ao pai, então preso na cadeia do Porto. “É domingo, 3 horas da tarde, estou só em casa. O nosso filho foi ao cinema, era o Joselito, estava todo contente. Disse-lhe que quando acabasse, voltasse logo para casa. Respondeu-me: ‘Está bem, deixe que eu não falho’. E lá vai passando os dias assim, a brincar, a jogar hóquei, à bola, mas quando são 7 [horas] lá está na loja para vir comigo para casa”, lê, sorridente, pois a parte seguinte já a
conhece de cor e salteado e reflete a análise da mãe à sua maturidade e sentido de responsabilidade.

E, sem fazer qualquer paragem, prossegue a leitura das palavras escritas por Balá para Staline. “Vou contar-te uma coisa. Esta semana fui a Lisboa, de tarde na quinta-feira, e quem ficou na loja foi o menino. Recebeu dinheiro das letras, passou os papelinhos do costume, recebeu dinheiro das contas correntes, fez o recibo, enfim, portou-se melhor do que a minha prima, que não percebe nada da loja.

Já temos um homem para nos ajudar”, cita, orgulhoso, pois na altura, frisa, tinha apenas 10 anos.

Presidente da Comissão Administrativa só com escudo de altruísmo

A história de Staline Rodrigues não se esgotou na luta contra o regime. No pós-25 de Abril, assumiu-se como figura central na construção dos primeiros alicerces da democracia no concelho e destacou-se ainda pelo altruísmo. Foi ele o mais votado entre pares para presidir à Comissão Administrativa, que assegurou a gestão do município da Moita até à realização das primeiras eleições autárquicas em liberdade (em Dezembro de 1976).

A tomada de posse de Staline – que foi acompanhado na comissão pelos vogais António Firmino, António Valério, José Pereira, Manuel Pereira, Tiago Mouzinho e Vitoriano Pereira – teve lugar no Governo Civil em Setúbal, em 15 de Maio de 1974, e ficou lavrada em acta. No documento, pode ler-se que o acto ocorreu um dia após a comissão ter sido nomeada por portaria (de 14 de Maio de 1974)do delegado da Junta de Salvação Nacional do Ministério do Interior.

E desta nova etapa resultaria um outro capítulo do livro da vida de Staline.

Definidor do carácter do homem que começou como carpinteiro e que, depois, fundou uma sociedade responsável pela construção de uma †ada de prédios na Moita, conforme sublinha Manuel Rodrigues.
“O meu pai não ganhou 1 escudo [moeda portuguesa antes da entrada em vigor do euro] com a sua actividade política. Fazia doações”, conta o filho, de orgulho estampado no rosto, ao mesmo tempo que exibe um molho de papéis, recibos passados à mão, comprovativos de doações, com a assinatura dos beneficiários ou, em muitos dos casos, carimba dos com impressão digital, porque na altura muitos não sabiam escrever. “O meu pai não precisava, era um pequeno burguês, mas podia, além daquilo que já ganhava com os seus negócios, também querer o dinheiro da Comissão Administrativa. O gesto de doar é sempre de se louvar”, considera.

Staline começou no MDP/CDE, foi militante do PCP e acabou no PS. E a saída do partido da foice e do martelo também tem história. “Ele foi presidente da Comissão Administrativa, mas o PCP afastou-o logo nas eleições [livres]. O meu pai concorreu para a Assembleia Municipal e quem foi o cabeça-de-lista (à Câmara Municipal) nessas primeiras eleições foi José Luís Pereira, que também pertencia à Comissão Administrativa.

Numa entrevista, o meu pai chegou a dizer que o PCP o afastou por ele já ser burguês. E foi verdade”, vinca Manuel. A política, de resto, motivou atritos entre pai e filho. “Agora é altura de olhar para estas coisas, também de reconciliar-me com ele, porque tivemos muitos conflitos por ele não entender que eu fosse contra todos os partidos políticos”, admite, em jeito de penitência, mas convicto de que está do lado da razão.

E a finalizar, Manuel Rodrigues lembra que o pai chegou a ser eleito pelo PS para a Assembleia Municipal e para a Assembleia de Freguesia da Moita. Todavia, isso, não invalida uma apreciação negativa. “O meu pai cometeu um erro na vida: foi passar do PCP para o PS.”, conclui.

Staline Rodrigues foi um dos antigos presos políticos homenageados, no passado dia 25 de Abril, com a Medalha de Bravura e Altruísmo atribuída pelo município vizinho do Barreiro, no âmbito das comemorações dos 50 anos da Revolução dos Cravos.

O auto da tomada de posse da Comissão Administrativa da Moita
Momentos vividos na Moita e a campanha para as eleições em 1969 com Staline Rodrigues em Alcochete
O registo do Arquivo da PIDE sobre Staline Rodrigues

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