Cardeal entende que a nossa diocese é diferente “para melhor”. Vaticina que o papel das gerações mais novas é “não perder a democracia”, ter a conciência que “nada está garantido” e que todos são protagonistas da democracia e da liberdade
O papel da Igreja durante a Revolução de Abril e a importância de defender a liberdade na atualidade são temas que Américo Aguiar destaca em entrevista a O SETUBALENSE. O cardeal reconhece a importância do papel do cónego João Alves durante os quase dez anos de preparação daquilo que viria a ser a Diocese de Setúbal.
O Bispo de Setúbal sublinha que a liberdade não é ilimitada, que termina na liberdade do outro, e vaticina que o papel das gerações mais novas é “não perder a democracia”, ter a consciência de que “nada está garantido” e que todos são protagonistas da democracia e da liberdade.
Esta diocese é diferente por ter nascido depois do 25 de Abril?
Penso que sim. O contexto, o ambiente, a maneira de intervir das pessoas, tudo isso, obrigatoriamente, está imbuído, quer enfim dos bastidores do que viria a ser o novo regime democrático, quer daquilo que era a vivência de Portugal e dos portugueses e dos que habitavam na Península de Setúbal, não tenho dúvida que sim. Depois, após a sua criação, eu lembro-me que D. Manuel Martins contava-me muitas vezes alguns incidentes que ocorreram naquele outubro de 1975, e acredito que também será normal que o modo de governar, de auscultar e de tomar decisões neste território específico, no contexto também de uma democracia que nascia ao mesmo tempo, moldou o protocolo e metodologias.
Não é a mesma coisa se fosse uma diocese do terceiro ou quarto ano, não é obrigatoriamente a mesma coisa. E é diferente para melhor.
Qual considera ter sido o papel da Igreja a partir de 1976?
Daquilo que fui ouvindo e lendo, primeiro que é no contexto da Igreja que muitas coisas acontecem, daquilo que veio a ser o novo regime democrático. Ouvimos muitas vezes que há pessoas, há protagonistas, há acontecimentos, há reuniões, há preparativos de muitas coisas naqueles últimos anos de ditadura, que acontecem no contexto eclesiástico. Ou seja, é a Igreja que permite e que cria condições para que muitas pessoas se encontrem, muitas pessoas falem. E onde é que os portugueses tinham alguma possibilidade de, enfim, achar, de pensar e de se reunir? No contexto eclesiástico.
Considera que D. João Alves foi uma peça importante na construção da Diocese de Setúbal?
O cónego D. João Alves foi uma peça fundamental, aliás foi ele que desenhou, estruturou e sonhou aquilo que pudesse vir a ser a nova diocese. Há um papel muito importante que é preciso reconhecer ao cónego João Alves naquilo que foi o trabalho que ele fez durante quase dez anos de preparação daquilo que viria a ser a Diocese de Setúbal. Muita gratidão.
Acredita que o conceito de liberdade e democracia tem-se alterado ao longo dos anos?
Aquilo que significa a liberdade e democracia para nós parece que não há dúvidas. Mas se percorrermos o tempo e as gerações, não é bem assim. Há alturas em que as interpretações são mais fechadas. Nós vamos fazendo caminho nesta, agora, fraternidade universal, em que quer a liberdade, quer a democracia, também ganham oxigénio, ganham dimensão naquilo que significa uma definição que abrange todos.
A liberdade não é ilimitada, não pode ser ilimitada. A minha liberdade tem de esbarrar naquilo que é a tua liberdade. Porque se eu impuser a minha liberdade à tua, alguém fica a perder. Nós estamos num tempo muito sensível. Se formos às redes sociais, saímos de lá mortinhos.
Porque as redes proporcionaram uma liberdade total, mas é uma liberdade muito condicionada, porque quem pensa diferente é esmagado, mesmo que tenha alguma razão, porventura, ou tenha toda. Mas quem pensa diferente não é respeitado.
A liberdade e democracia fazem parte desta grandeza de ouvir aquele que pensa diferente. Mesmo que aquele que pensa diferente esteja a pôr em causa aquilo que são as colunas da dita liberdade e democracia.
Nós defendemos um regime democrático de liberdade que permite que quem defende o contrário se possa afirmar. Isto parece-me um bocadinho esquizofrénico, mas é mesmo assim. Aliás, nós temos muitas histórias de regimes e ditaduras muito complicados, que chegaram lá exatamente percorrendo a passadeira vermelha que a democracia e a liberdade lhes estenderam.
A forma da Igreja ajudar na Revolução de Abril era através de atividades de cariz social e de ajudar a população que mais precisava?
Não há dúvidas que a caridade é o nosso ADN. A caridade é a marca da solidariedade. A caridade é a marca identitária do ser cristão, das comunidades cristãs. Por isso, não me espanta nada que a presença e acompanhamento dos homens e das mulheres que cá viviam, que cá sonhavam, que cá sofriam, tenham acontecido de mãos dadas e de coração comum, com os sacerdotes, com os homens e mulheres da Igreja, que aqui também exerciam a sua missão, parece-me evidente.
Aliás, até temos relatos e testemunhos, que ainda hoje vivem em alguns, até de sacerdotes operários e de missionários. Não me admira nada que, efetivamente, a Igreja presente em Setúbal nesse tempo, de um modo especial, a ação sócio-operativa, tenha feito a diferença.
Sendo a Igreja um dos ‘pilares’ do regime, as pessoas dentro da instituição que eram contra o regime tinham uma tarefa ainda mais complicada?
Eu não sei se a Igreja era uma das colunas do regime. Sou do Porto, e do Porto a imagem que eu tenho é do bispo Albano Ferreira Gomes, que tentou gritar bem alto para que todos os que não tinham voz fossem audíveis, como dizia o senhor D. Manuel Martins, ser a voz dos que não tinham voz. E o bispo do Porto pagou muito dolorosamente, aquilo que foi a sua ousadia, a sua missão, de alertar Portugal e os portugueses para a situação, com dez anos de exílio, fora do país, entre 1959 e 1969. Naquilo que sacerdotes e agentes pastorais, que nas nossas paróquias e nas nossas dioceses, tivessem um trabalho mais visível, contrário àquilo que era a cartilha, porventura do regime vigente, acredito que teriam tido um bocadinho de dificuldade, acredito que sim.
Dom João Alves merece uma homenagem por parte da cidade de Setúbal?
Hoje em dia, é tudo muito efémero. Qualquer um carrega no delete e já foste. Hoje, se formos perguntar às gerações mais novas sobre Dom Manuel Martins, já não sabem quem foi.
De facto, a figura de Dom João Alves foi muito importante. Aliás, até neste contexto dos 50 anos do jubileu, é também, para mim, uma oportunidade de mostrar a nossa gratidão e homenagem a Dom João Alves e a tantas outras figuras que, nesses anos 60, 70, foram os homens e as mulheres protagonistas da criação daquilo que viria a ser a Diocese.
Neste momento, qual é o seu papel na democracia?
Primeiro, o nosso papel na democracia é não perder a democracia. Nós, e nós malta nova, temos de ter consciência que nada está garantido. Estamos a viver momentos muito complicados da política mundial. Tivemos a desistência do presidente Biden de se candidatar e agora tudo o que daí resulta. O atentado ao presidente Trump e tudo o que daí também resulta.
E o contexto que estamos a viver uma guerra na Europa, com a Rússia e a Ucrânia, na Terra Santa. Depois as eleições britânicas, francesas, as eleições que vão acontecendo na América Latina e as eleições europeias.
Este esticar das posições, com os extremos a darem provas de vida. Temos que estar sempre atentos, respeitando as opções de todos e de cada um, mas sempre atentos às razões desse esticar de posições e esticar de extremismos que nunca são positivos.
O meu papel, o nosso papel, é acima de tudo dizer às gerações mais novas que nada está garantido. Todos nós somos os protagonistas da democracia e da liberdade. Se acharmos que isto está garantido, um dia destes podemos acordar e não estar. É tudo muito bonito, mas nós, graças a Deus, não temos a experiência.
Nós falamos de liberdade teoricamente, porque nós não sabemos o que é a privação da liberdade, nós não sabemos o que é a censura, nós não sabemos o que é a perseguição política.
Vemos nos filmes, ouvimos notícias e estudamos a história, mas não temos essa experiência directa na nossa vida ou na vida dos nossos, nas instituições. Por isso, temos que ter muito cuidado para não passar aos jovens, porque eu acho que às vezes acontece muito isso, uma ideia de que tudo está garantido, siga para a frente cada um por si, e isso não é bem assim.
É imperativo, não é delegável, o papel que cada um tem, a missão que cada um tem, a vocação que cada um tem em manter a liberdade, em manter este regime democrático, com actualizações e melhorias permanentes.
Como dizia Churchill, de todos os regimes conhecidos, a democracia é a menos má. Portanto, é importante despertar os jovens, eu digo sempre, para a política, não é a política partidária, é tratar da polis, da coisa pública. E se nós não estimularmos os jovens a terem gosto pela coisa pública, depois podemos nos vir a arrepender mais para a frente.
Os partidos precisam de jovens, precisam de renovação, precisam de manter as suas colunas de formação, de visão, de projectos de crescimento, mas precisamos sempre de sangue novo.
E se falarmos com as pessoas no geral, portugueses em geral e mesmo dos militantes dos partidos, eu acho que 90% de quem vota num partido, não leu o programa eleitoral. Portanto, vota em razão de afeto. Não vota em razão de propostas efetivas, de ter conhecimento do programa da leitura do programa que está em campanha, em votação. Seja regional, autárquico, nacional.
Temos um défice muito grande de literacia para aquilo que significa os programas dos partidos apresentam e que depois são escolhidos pelos portugueses.