9 Agosto 2024, Sexta-feira

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“A dimensão humana do exercício do jornalismo é o maior dos desafios”

“A dimensão humana do exercício do jornalismo é o maior dos desafios”

“A dimensão humana do exercício do jornalismo é o maior dos desafios”

Investigador que integra o LabCom, laboratório da Universidade da Beira Interior dedicado à Comunicação, ajuda-nos a pensar sobre o presente e o futuro da imprensa regional

Pedro Jerónimo, membro integrado do LabCom, unidade de investigação da Universidade da Beira Interior (UBI), tem como principal foco na sua investigação os media regionais e a sua adaptação ao digital e mais recentemente tem-se centrado na questão dos desertos de notícias. Uma conversa sobre jornalismo regional numa altura em que O Setubalense celebra 169 anos e se prepara para enfrentar os muitos desafios que o futuro promete trazer.

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Está a estudar os desertos de notícias. Já tem algumas conclusões consolidadas?

Os dados que nós temos, neste momento, ainda são os dados de 2022, que retiramos da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC). Retiramos os dados a 31 de Maio e aquilo que verificámos é que 25% dos concelhos em Portugal, não têm qualquer meio de comunicação social, seja jornal, rádio ou meio digital. Cerca de 54% dos concelhos estão em algum nível de risco, ou seja, não têm meio ou têm, mas têm uma periodicidade dilatada – aquilo que nós consideramos semidesertos (por exemplo, um jornal mensário não podemos dizer que não existe, porque existe, mas não é uma periodicidade que seria o mais desejável). Este estudo não está a dizer que os concelhos sinalizados são invisíveis à cobertura jornalística, nós apenas sinalizámos que não existem meios e é um primeiro passo.

Os passos seguintes, já estamos de alguma forma a fazê-los, que é ir a fundo na questão. Nós começamos o estudo com uma questão que é perceber esta realidade em Portugal e terminamos o estudo com outra grande questão que é: como é que estas pessoas, que residem nestes 25% ou 54% de municípios que estão num nível de risco, se informam sobre o próprio território, a sua comunidade, cidade ou terra. Nós já demos um passo em frente, não no sentido de estudar todo o país, mas já o fizemos, por exemplo, no concelho de Manteigas que é considerado um deserto de notícias. Já fizemos grupos de discussão com adultos e idosos, só falta fazer com jovens. Curiosamente, as pessoas dizem que se informam em conversas de café e através de meios que existem na vizinhança que, aliás, foi uma das hipóteses que colocámos.

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Nós vamos repetir o estudo este ano. É verdade que há aqui coisas discutíveis, mas quisemos nesta segunda edição repetir exactamente aquilo que fizemos em 2022 para percebermos que evolução é que houve nestes dois anos.

Tem alguma previsão de evolução ou o contrário?

Eu prevejo que será difícil nós aferirmos isso exactamente. Um subsector dos media que nos deu muito trabalho foram as rádios locais que, obrigatoriamente, têm de ter blocos informativos e um jornalista. Por isso, tivemos de estar a ouvir as rádios para perceber se naquele período de análise tinham um bloco informativo e confirmar se tinham jornalistas.

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A nossa base é a base de dados pública da ERC e a experiência que eu tenho de investigação nesta área, é que, por vezes, a base de dados está muito desatualizada. Dois anos de análise é pouco tempo porque, nestes dois anos pode ter acontecido algum meio ter encerrado. E o meio encerrar ou deixar de publicar e isso ser comunicado à ERC leva tempo. Então é possível que possamos encontrar meios que já não publicam, mas que ainda estão lá registados.

Por isso, é que tendo em conta essa questão e também para nos poder dar um olhar melhor sobre o terreno, é que a nossa intenção é fazer exatamente o mesmo mapeamento com os mesmos dados, mas depois ter um olhar mais analítico por regiões – Norte, Centro, Alentejo (que é a zona mais problemática em termos de desertos de notícias), Algarve e Ilhas -, com o olhar de pessoas desses territórios que nos consigam, sobretudo, fazer essa apuração – se determinados meios estão a publicar ou não.

Que soluções vislumbra para combater os desertos de notícias?

A resposta a este problema, deve ser uma resposta de envolvimento coletivo. Mas há quem esteja na linha da frente de responsabilidades: o Estado. Ultimamente, tenho falado muito numa questão, certamente por estarmos a celebrar os 50 anos do 25 de abril: o artigo 37º da Constituição da República Portuguesa fala sobre a liberdade de imprensa e fala, concretamente, no ponto de que todos os cidadãos têm o direito de informar e de serem informados. E eu, acrescento de forma certifi cada, que quem tem ajudado a garantir a nós cidadãos, informação certifi cada, tem sido o jornalismo. Portanto, eu acho que quem tem a responsabilidade de cumprir e fazer cumprir é, desde logo, o Presidente da República.

Eu acho que o Estado pode financiar os media por via de apoios à contratação. Teremos melhor jornalismo e menos desertos de notícias, se houver mais meios e jornalistas. Há quem também já tenha falado na atribuição aos jovens, quando fazem 18 anos, de uma subscrição num meio à escolha.

No caso concreto dos desertos de notícias, há aqui uma outra dimensão que pode ajudar à sua redução em alguns casos: inteligência artificial e automatização. Nalguns concelhos, talvez por via da dinâmica empresarial, uma vez que, a publicidade ainda é uma fonte de receita preponderante, a automatização pode, eventualmente, ajudar.

Através de uma lógica colaborativa em que alguns elementos dessa população, pessoas mais comprometidas civicamente, possam estar mais receptivas à colaboração e por meio da automatização apoiar a recolha de informação para ser depois enviada para jornalistas e meios que atuem na vizinhança.

Para, num primeiro momento de contacto com a informação, os jornalistas a possam tratar, analisar e perceber se é um assunto que justifi ca uma notícia.

Nós entendemos que os desertos de notícias serão, garantidamente, espaços privilegiados porque a desinformação, discurso de ódio e o populismo existem em todo o lado. Mas, se não existe informação certifi cada nestes territórios, este tipo de realidades crescerá mais rápido e sem um contraponto, comparativamente, a outros onde existem meios e jornalismo.

Os desertos noticiosos vão aumentar?

Se, por um lado, eu acho que, tendencionalmente, os desertos de notícias vão aumentar, por outro lado, acho que a importância deles vai sair reforçada. Até porque, recordo-me do Digital News Report, que diz que somos, dos 47 países estudados, o segundo ou o terceiro onde as pessoas mais confiança depositam nas notícias. E eu diria que há uma outra dimensão da questão, nomeadamente, fora dos grandes centros (Lisboa): a confiança que existe nos territórios que têm meios regionais. Porque são os meios que falam sobre a realidade daquelas populações e daquele território.

A resposta para esses desertos não aumentarem é percebermos a real dimensão da questão, isto é, perceber quantos desses concelhos estão efetivamente a ser invisíveis e o que é que nós podemos fazer para responder a isso. Não acho que todos os 308 concelhos que existem no país tenham de ter um órgão de comunicação social. Tem é que ser garantido às respetivas populações destes 308 municípios que tenham informação regular e certifi cada.

A solução não será igual para todo o país, porque a realidade de cada território é diferente. As zonas Norte Litoral e Centro do país são muito fortes em termos de meios regionais, mas depois temos um Alentejo que é um deserto, literalmente, e temos o Sul do país que tem alguns meios.

Quais são os principais desafios do jornalismo hoje e que respostas devem ser dadas a esses desafios?

Ainda que tenhamos a tecnologia e olhando um bocadinho para história, vemos as coisas a repetirem-se. Foi assim quando apareceram as máquinas de escrever, depois os computadores, Internet, redes sociais, dispositivos móveis e, agora a Inteligência Artificial. Tradicionalmente, num primeiro momento há um certo deslumbramento de que isto vem resolver os problemas.

A tecnologia é um desafio, mas eu acho que o principal desafio está ligado à dimensão humana, porque o jornalismo ainda é feito por pessoas. Por isso, deve garantir-se um trabalho digno para essas pessoas.

O digno aqui são as condições e salário, porque estas pessoas têm direito a salário, a ter tempo de lazer e a estar com a família. Um jornalista quando está de férias, e assiste a um acontecimento, não deixa de ser jornalista só porque está de férias, tal como um médico, enfermeiro, bombeiro ou polícia.

Portanto, colocaria a dimensão humana do exercício do jornalismo como o maior dos desafios, porque temos redações cada vez mais a reduzir e a trabalhar em situações precárias. Também é importante termos jovens nas redações, porque aportam competências e valências diferentes de um jornalista com 60 anos e é na diversidade que se enriquecem as redações.

Se continuarmos a assistir à redução de redações e, eventualmente, ao encerramento de meios, estaremos a aumentar os desertos de notícias e, consequentemente, a aumentar os territórios e as comunidades sem informação certificada.

E todos estes fatores numa última instância levarão a uma degradação da democracia. Por essas outras realidades que existem, como o populismo e discurso de ódio, que cada vez mais crescem nas redes sociais e, para todos os efeitos, com todas as virtudes e problemas (porque existem no jornalismo), é sempre preferível a existência do jornalismo para fazer um contrabalanço. Porquê? Porque os jornalistas fazem o seu trabalho e, no limite o cidadão pode confrontálo, pode escrutiná-lo. Aquilo que está nas redes sociais, publicado por pessoas que não são jornalistas, com outras intenções por trás, são coisas que não são escrutináveis, nem reguladas. E esse é um desafio também. É um desafio para a geração mais jovem: o que precisamos é de jornalistas e, sobretudo, jornalistas com sentido ético e deontológico.

Quando se fala em jornalismo, fala-se na questão tecnológica. É verdade que é importante, mas, honestamente, acho que é preciso olhar para a dimensão humana e para as condições dos jornalistas. Caso contrário, não sei onde iremos parar

E como é que podemos combater a desinformação?

Felizmente, estamos num país que se tem destacado a nível mundial numa coisa, que para mim é a principal resposta, que tem a ver com o ensino e a literacia mediática ou digital.

Da mesma forma que é importante que as crianças aprendam português ou matemática, também é importante que desenvolvam competências de literacia digital. Também, literacia mediática, eventualmente, literacia para as notícias: perceber o que é que implica o trabalho de um jornalista e perceber como é que se constrói uma notícia. Porque isso permitirá que nós tenhamos, cada vez mais cedo, cidadãos capacitados e críticos.

É o contrário de alguém que aponta o dedo ao jornalista que diz que todos os jornalistas são iguais e que só se produz “jornalixo”.

Naturalmente, os jornalistas, por outro lado, vivem com o fator tempo, e se os cidadãos perceberem os constrangimentos que os jornalistas vivem, se calhar perceberão.

Alguém que tenha meses de salário em atraso e não tenha condições de trabalho, será um bom profissional? Será mais difícil. E os jornalistas não são diferentes dos outros. Os jornalistas não gostam de errar, mas as poucas condições em que trabalham potenciam o erro.

A imprensa regional já vivia com dificuldades como o Grupo Global Media há muito tempo, mas continuam a fazer o seu trabalho. É verdade que não é uma profissão qualquer e quem está, está por gosto e sujeita-se a isto. O que se perde é população menos informada de uma forma certificada. Então, tendencionalmente, os jornalistas acabam por optar pela sua missão social.

Como antevê o futuro do jornalismo, sobretudo o regional?

Curiosamente, um dos autores dos desertos de notícias, Giovanni Ramos, escreveu a tese de doutoramento sobre o jornalismo de proximidade em rede. Ele reflete sobre os passos que será importante dar e, olhando para a realidade dos meios regionais, a necessidade de trabalharem mais em colaboração: colaboração editorial e comercial. Olhando para o futuro, eu acho que para a sobrevivência de alguns meios, fará sentido se eles colaborarem mais em rede.

Estamos a falar, tradicionalmente, de meios com poucos recursos humanos, financeiros e técnicos. Eu fui jornalista da imprensa regional e, na altura já se falava na importância destes meios colaborarem entre si. Por exemplo, meios que são do mesmo território e têm dois ou três jornalistas, porque não um deles ir a um evento e o outro vai a outro e partilham, eventualmente, conteúdos? Esta lógica da colaboração, eu acho que é um dos possíveis caminhos.

Outro será o crescimento de meios digitais de âmbito hiper-local. De uma forma geral, o jornalismo tenderá a caminhar para projetos de nicho, como Gerador, Fumaça ou Setenta e Quatro – assumem-se como jornalismo independente, mas temáticos. Num âmbito mais local, temos o Coimbra Coolectiva.

É um meio que tem temas muito específicos com um compromisso social muito grande e com a dinamização de eventos na cidade (periodicamente, têm iniciativas de juntar os cidadãos a pensar em soluções para a cidade).

Ou seja, o jornalismo passará por projetos de nicho, que assumem um compromisso com o território, a comunidade e os seus interesses. Mas, isso também será um desafio muito grande, porque até que ponto as populações reconhecem a importância da existência deste tipo de meios? Como disse no caso dos desertos de notícias, o Alentejo é a zona mais grave do país. Temos também um problema, na dimensão política da questão que é: se pensarmos em Portugal Continental e fizermos um risco no meio, temos de um lado o litoral e do outro o interior e quando olhamos para a faixa do país que está mais perto de Espanha, vemos que nesses distritos se elegem três ou quatro deputados. Nós vemos que os representantes destes territórios na Assembleia da República são residuais.

Portanto, o interesse por estes territórios acaba por ser proporcional à representatividade que eles têm na Assembleia da República. A dimensão política também pesa nas decisões e esta faixa do país é a mais problemática.

Costumo dizer que se nós olharmos para o país, temos em, praticamente, todos os distritos uma universidade ou um instituto politécnico que têm um curso de comunicação ou jornalismo. E esses são pontos que estão mais junto das populações e, coletivamente, podem contribuir, ou pela dimensão do ensino ou pela investigação, e aqui na UBI estamos numa posição de liderança, porque somos quem mais investiga sobre a realidade dos media regionais.

Eu acho que a resposta terá de ser sempre coletiva para as pessoas perceberem a importância dos meios. Não sei o futuro, mas acho que terá de passar por diálogo e procura coletiva de soluções.

Tem algum conhecimento sobre a situação do jornalismo no sul do país, em especial no distrito de Setúbal? O que observa?

Sei que desde o início de 2017 deixou de existir o Setúbal na Rede, um pioneiro no distrito. À parte dessa questão, houve um passo importante com a fusão entre o diário da região e O Setubalense. Não sou, neste momento, um profundo conhecedor da realidade de Setúbal, nomeadamente, em termos dos seus meios mais locais, mas acho que foi um passo importante que se deu, no sentido de manter este título histórico. Temos cerca de três dezenas de jornais centenários no país e O Setubalense é um deles.

É importante, para a população de Setúbal, sobretudo, terem a garantia que têm notícias da região. É completamente diferente ter um meio que se dedica, se preocupa e está atento à realidade daquele território e daquela comunidade.

Qual é o papel dos órgãos de comunicação social em territórios menos povoados?

Serão importantes, na medida em que serão a única forma dessas populações terem informação certificada e regular sobre a sua realidade. Porque de outra forma, quando são notícia, serão quando acontecer alguma coisa extraordinária que leve ali um jornalista de um meio nacional.

Territórios mais despovoados terão sempre informação, seja a informação por conversa de café, seja por um grupo no Facebook. Mas aí não têm o compromisso que o jornalista tem: rigor, ouvir as partes, contextualizar. Uma população num território menos povoado, sem este tipo de meios, será uma população mais invisível. Quando eles existem, para além de, manterem essa população informada também preservam a identidade e a cultura daquele território. Porque quando existe um meio, ele vai documentando o quotidiano daquele território e daquela comunidade. Por exemplo, se um historiador quiser perceber a história do Fundão, garantidamente, vai direto ao arquivo do Jornal do Fundão.

Biografia

Pedro Jerónimo Pedrosa tem 44 anos e é natural de Leiria. Em 2003, começou a trabalhar como jornalista no O Mensageiro – o semanário mais antigo do distrito de Leiria – e lá ficou até 2013, quando o jornal deixou de ser publicado. Entretanto, em 2019, licenciou-se em Comunicação Social e Educação Multimédia, na Escola Superior de Educação e Ciências Sociais do Politécnico de Leiria.

Desde 2014, é doutorado em Informação e Comunicação em Plataformas Digitais pelas Universidade do Porto e Universidade de Aveiro, com a tese “Ciberjornalismo de proximidade: A construção de notícias online na imprensa regional em Portugal”. Foi mantendo uma colaboração regular, a título voluntário, com a imprensa local como provedor do leitor do Setúbal na Rede (primeiro jornal exclusivamente digital em Portugal) e com o “Jornalizmo”: Movimento Cívico – espaço de refl exão dos cidadãos sobre o papel dos media no seu quotidiano, em Leiria. Também foi docente e investigador em instituições de ensino superior.

Atualmente, é investigador do LabCom, unidade de investigação da UBI, no qual desenvolve trabalhos no âmbito do Re/media.Lab – Laboratório e Incubadora de Media Regionais.

*Bruna Duarte, natural de Leiria, tem 22 anos e é licenciada em Ciências da Comunicação pela Universidade da Beira Interior. Em Janeiro de 2024, abriu a rádio do V Congresso dos Jornalistas e fez parte da redacção juntamente com mais de 100 alunos de todo o país. Frequenta o 1º ano do mestrado em Jornalismo na Universidade da Beira Interior.

** Gisela Santos, natural de Leiria, tem 23 anos e é licenciada em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Frequenta o 1º ano do mestrado em Jornalismo na Universidade da Beira Interior.

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