Experimentou ser pároco, no Faralhão e depois no Barreiro, mas primeiro foi trabalhador nas fábricas, em França e em Portugal, da Setenave à Equimetal. Foi despedido, teve ordenados em atraso e viveu com os salários que não chegam ao fim do mês
Está preenchida uma lacuna na história recente de Portugal, já há um testemunho em livro de um padre-operário, que ajuda a perceber a vida e o contributo social e religioso dos sacerdotes que optaram por ganhar a vida e cumprir a sua missão de fé como trabalhadores das fábricas. A autobiografia de Luís Martins Ferreira, intitulada ‘O torno e o altar – Memórias de um padre-operário’ é vista assim por quem apresentou a obra, lançada este sábado no Salão Nobre da Câmara Municipal de Setúbal.
Não é coincidência, evidentemente, que este livro surja em Setúbal, cidade e região de tradição industrial e luta de trabalhadores. O autor, o padre Luís Martins Ferreira, Nasceu em Arganil e passou por Paris, mas foi na Península de Setúbal que, sobretudo nos anos 80, melhor sentiu o drama social de quem vivia do trabalho nas fábricas. Foi fresador mecânico em várias empresas da região, como a Lisnave, a Standart ou a Equimetal.
“Sei, pois, por experiência vivida o que é ter mais mês do que salário, o que é viver mais de um ano com muitos meses de salários em atraso, o que é o drama de, de um dia para o outro, ficar no desemprego. Foi neste mundo do trabalho que eu procurei servir a Jesus Cristo e anunciar o seu Evangelho de salvação, que é vivido por cada um de nós na solidariedade de irmãos, construindo uma sociedade que luta pela justiça, pela fraternidade e pela paz.”, escreveu Luís Ferreira no livro.
A vice-presidente da câmara, Carla Guerreiro, disse que a cidade está “profundamente grata” pela sua vida de “efectiva defesa dos trabalhadores” e destacou o exemplo do padre.
“É difícil encontrar uma memória destes tempos que melhor detalhe o que foi ser padre-operário, o que foi estar ao lado dos trabalhadores que são, afinal, a mola, a alavanca que impulsiona e move o mundo. É para nós uma honra, enquanto representantes do poder local democrático em Setúbal, uma cidade de trabalho e de trabalhadores, receber neste Salão Nobre a apresentação deste livro e o seu autor.”, afirmou Carla Guerreiro.
A apresentação do livro, que encheu por completo o Salão Nobre, esteve a cargo do historiador Albérico Afonso Costa que é também o autor do prefácio. Das seis razões que o historiador indicou para não deixarmos de ler esta obra, destacamos tratar-se da primeira autobiografia de um padre-operário, escrita por quem “toma partido”, que representa uma “incursão na história de Portugal e da Europa” e que “é, também, um manifesto contra o silêncio sobre o passado”. Albérico Costa sublinhou que Luís Ferreira “viveu contra a corrente”, por exemplo, quando, “após a Revolução, quando podia receber os louros de opositor ao regime, preferiu continuar a condição de operário”.
Neste livro de 300 páginas, o autor, que foi também capelão do Outão, onde viveu “dias felizes”, recorda os tempos de antes e imediatamente após o 25 de Abril, a primeira greve em que participou, o despedimento colectivo na Standard Eléctrica, e conta como foi ser pároco do Faralhão e das Praias do Sado já com 65 anos. Ligado à construção da nova Igreja do Faralhão, revela, por exemplo, o complicado processo de legalização dos terrenos onde existia a antiga capela e onde foi construído o actual edifício.
No final da presentação houve tempo para a participação dos presentes, tendo falado várias pessoas, como o académico Viriato Soromenho-Marques, que considerou de uma “nobreza extraordinária” a escolha do autor “por uma utopia da justiça”, ou o antigo presidente da Cáritas, Eugénio da Fonseca, que destacou o papel do padre Luís Ferreira na construção da Igreja do Faralhão.
O livro, da Editora Paulinas, custa 20 euros.