Onde se fica a saber da arte tipográfica desde o século XV. Local de tertúlias abertas e entusiasmantes
Encontrámos, num destes desgraçados dias de pandemia que vivemos, um dos homens mais fascinantes do Seixal. Eduardo Palaio, 79 anos, figura de múltiplas artes, ofícios e saberes: escritor, cartoonista e também pintor de quadros, “para ganhar dinheiro”, como ele próprio diz.
Entre as muitas profissões por onde passou, a de tipógrafo foi a sua principal, onde, aliás, começou a aprender com o seu pai, na tipografia da família no Seixal.
O encontro aconteceu no Espaço Memória, no 41 do Largo de Camões, no coração da cidade velha, onde rotativou durante muitos anos a “Tipografia Popular”. A Câmara do Seixal adquiriu as instalações, restaurou-as, beneficiou-as e fez delas um espaço para recordar a primeira tipografia a funcionar no concelho. “Eu acho que este espaço deveria afirmar-se mais como uma homenagem à arte tipográfica e aos tipógrafos, uma homenagem à sua contribuição para o desenvolvimento, saber e conhecimento do mundo”, atalhou Eduardo Palaio.
No Espaço Memória pode ver-se muito do início da tipografia, desde as primeiras máquinas ao manusear de caracteres e ouvir a história através de Eduardo Palaio. Por ali, passam estudantes e professores de todos os graus de ensino e de todo o País. “Neste momento, podemos mostrar-lhes o que era uma tipografia do século XV”, esclarece. Contudo, as “visitas que me são mais gratas são as dos simples passantes, aqueles que olham, ficam interessados, perguntam e entram”, realça.
Por aqui, têm passado, num ambiente de genuína tertúlia, figuras ligadas à arte e ao jornalismo, como Mário Zambujal, Barata Feyo ou Alice Vieira. São momentos de raro enlevo, em que o importante é aprender.
O homem e a obra
Nascido na Figueira da Foz, Eduardo Palaio rumou com a família, ainda criança, para as margens da cidade da baía. Dá os primeiros passos no espantoso mundo artísticos em “O Mundo Ri”, dirigido então pelo impagável José Vilhena, ao mesmo tempo colabora com outras publicações. Consagra-se então ao cartoon, tendo participado em certames no estrangeiro (México, Cuba e França, por exemplo) e em Portugal.
Ao mesmo tempo, dedica-se à pintura, e viu o seu talento reconhecido em exposições individuais no átrio das Amoreiras, em Lisboa, e na Galeria Municipal Augusto Cabrita, no Seixal.
Também se notabiliza na arte da escrita, como o atestam as distinções que recebeu. Prémio Nacional de Conto Manuel da Fonseca (2010) e Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco, da Associação Portuguesa de Escritores, um dos mais prestigiosos galardões neste género literário, além de muitos outros, tanto no conto como na literatura infantil, designadamente, o Prémio Hans Christian Anderson, atribuído pela Câmara do Seixal.
É também autor de outros trabalhos literários, merecendo realce “Uma história do Zé”, “Pinta-o às Bolinhas Azuis” (Plátano Editora), “A Peregrinacão de Artur Vilar” (ed. Miosótis), “Caixa-Baixa” (Colibri) ou “Os Dez de Tânger” (Clube do Autor).
A sua vida, porém, não se restringiu à escrita e à pintura, foi igualmente rica em muitos outros domínios: praticou basquetebol federado no Seixal FC, clube em que criou, com Crisógono Lopes, uma secção de Ginástica, a qual organizava sessões culturais para a infância e juventude, impulsionadas pela Associação, Portuguesa de Educação pela Arte, encabeçada pela saudosa Alice Gomes, irmã de Soeiro Pereira Gomes.
A filantropia em acção
Eduardo Palaio teve ainda tempo para fundar uma escola para adultos, de frequência gratuita, na Cooperativa Operária 31 de Janeiro, antes do 25 de Abril, relacionar-se com o teatro, em finais da década de sessenta, e dedicar-se à animação cultural pelo Cine Clube do Barreiro, antes da Revolução e em confronto directo com o regime de Salazar.
Participou activamente na oposição democrática ao regime fascista e empenhou-se nas políticas progressistas pós-Revolução. Homem do mundo e de Abril, foi tipógrafo, ajudante de pedreiro, funcionário administrativo, militar na guerra colonial, cooperativista profissional, ajudante de montador e soldador, pintor e muralista, designer, técnico oficial de contas, tipógrafo de novo (impressor e compositor) e, hoje em dia, funcionário municipal à frente da vida e dos destinos do Espaço Memória.
“O que me deu mais prazer? Não sei o que lhe diga, porque sempre precisei de dinheiro até ao fim do mês. O que pintei, por exemplo, foi para vender”, confessou, junto à magnífica prensa de Gutemberg, uma réplica executada à escala pelo marceneiro Manuel Cordeiro. Todavia, deu-lhe um gozo superior ajudar operários em dificuldade depois do 25 de Abril, abrir-lhes os “caminhos jurídicos para que pudessem continuar a trabalhar”, muitas vezes através de cooperativas de produção. Neste aspecto, “a nossa ajuda estendia-se a todo o País incluindo as ilhas”. Era uma “alegria pôr as coisas a funcionar, racionalizar o trabalho, modernizar a contabilidade, repartir justamente os resultados da produção. Ajudávamos também aqueles que saiam da prisão, através da fundação “Praxis”, localizada no Largo da Graça.